fructus
January 2, 2021 § Leave a comment
certos dias amadureces-me
entras por mim dentro
um rio pulmonar pela ferida exposta de uma árvore entreaberta
sobrevivo por conta desses dias
em que respiro a seiva que verte pela costura do músculo incendiado
tocas-me e liquidifico-me
dispo-me sob a tua luz com a água do teu hálito e reaprendo os astros
a exatidão do espaço e a matéria dos frutos suculentos
olhas-me como um certo vento despercebido que trespassa nu a ramagem de uma chuva inesperada
tocas-me desde as folhas sentimentais e desfias-me com um sol incandescente que sangra
o sol pousado no vértice da tua língua contra os relógios parados dentro do nascente
e a árvore que eu sou enquanto bebo e cresço enrubesce
corre um rio febril de horas adormecidas que amanhecem
é subitamente dia e eu compreendo tudo
que há eternidade em tudo isto mesmo que não pareça
do amor naturalmente ajoelhado nos dias tocar a boca costurada da terra
tu dentro desta veia e um jorro súbito de sangue na paisagem
de onde bebo da estação um fruto doce e rubro de muitos dias certos
e eternizo-me
feline
November 14, 2020 § Leave a comment
noites há em que gatos vagueiam paredes e a casa estremece
adormecer é deitar garras aflitas ao sono para calar os mios
asfixiar invasores da solidão
humidificar o medo
atingir a síncope do amor
ser brutalmente eletrocutada pela ferida e desfalecer
as mãos começarem súbitas a ronronar
presas aos gatos do coração
<3
October 11, 2020 § Leave a comment
^
October 5, 2020 § Leave a comment
esquecer é desinteressar-me
descer ao porão da memória para encaixotar velharias
ascender os degraus do abandono em direção à luz
tudo tem a sua idade para se organizar e recolher
os líquenes do tempo
a humidade própria que se devolve à terra
quando desponta uma casa duma semente
abrem-se as mãos e brotam paisagens desconhecidas
por onde ignoramos ainda os nomes concretos
por onde compreendemos já o enveredar das sombras
esquecer é sempre e logo uma questão de luminosidade
de arestas, de inclinação, de vertigem, de profundidade
num dia de sol infinito
em que atravesso o céu num corpo vivo
reacendo a essência
já não consigo nomear o que esqueci
sperare
August 14, 2020 § Leave a comment
esperar-te
é de certa forma alimentar-me
fazer da memória última água para partir
amar-te
algumas vezes solar
algumas vezes aquática
algumas vezes prateada entre os espelhos
pacifico-me, atravesso-me, abasteço-me
importa apenas saber regressar ao local do culto
com a fome reflectida no encantamento
das últimas humidades por onde andei
e as mãos preenchidas de luz para te contar
insomnia
June 24, 2020 § 2 Comments
porque custa-lhe adormecer
a noite escolhe ler o livro do amor
que começa no capítulo da memória e
termina no capítulo da insónia
salta sempre o capítulo das probabilidades para saber o fim
a noite extrapola os significados do dia adensando-os de metáforas
entristecendo a memória que vai fazer um chá
a noite enquanto espera lê os capítulos por escrever
subitamente desentendendo tudo do amor
e o chá da memória arrefecer
então o amor sente um frio terrível e incompreensível
levanta-se e vai ao armário buscar um cobertor
para aquecer a história e adormecer
domes-ti-cidades
June 4, 2020 § Leave a comment
nos dias de mendicidade
limito-me a fazer barrelas do passado
a limpar os vidros do futuro
a requentar o presente com o lume dos outros
dedico-me a domar-me pela tua cidade
com os bichos ao peito
fazer-lhes festas com o pé
lamber-lhes o pelo com o sexo
dar-lhes de mamar a minha língua
estou de passagem
pelas pequenas grandes humidades alheias
prosseguir é masturbar-me com o tempo na aspiração do espaço varrido da casa
como tal, nos dias miseráveis
limpo as cinzas dos cigarros que não fumo
faço nuvens para regar os vasos
mendigo-me
e dou-me esmolas
venho-me no pó e nas sopas da má catadura
viridi
April 30, 2020 § Leave a comment
domum
April 7, 2020 § Leave a comment
agora que os dias fecharam
o mundo é uma grande noite clara
e a distância
chega com a luz com que reconstruo a casa
se não fosse esse gesto
simples
da natureza entrar com o sol desde as fundações
para restaurar do medo as profusas fachadas inúteis
e eu
inesperadamente entender a intimidade de tudo
para lá deste hábito natural de possuir a construção
se não fossem os pássaros
nidificarem súbitos no beiral da fragilidade
a respiração delicada de uma relíquia antiga
se não fosse preciso fechar-me para decifrar o invisível
diria ainda do mundo um habitáculo de irrecuperáveis viagens
do mar
uma fotografia com maresia
desde o filtro das marés ao arco-íris sem retorno
diria verdadeiras inutilidades puras
de telhados sem alicerces sobre argamassa movediça
não fosses tu vida visitares-me
rapidamente com a morte
calares-me
fechares-me nos dias
e eu
abrir-me
o pai
March 20, 2020 § Leave a comment
no céu continua os planos de poupança
poupar discussões, poupar sono, poupar paciência
tem todas as mesas, todas as bancas, todas a petisqueiras no céu
o pai tem todo o vinho e todo o fumo e toda a alegria que pode ter
o pai não gasta um tostão no céu porque é tudo de graça
o pai tem uma coleção de pássaros que o seguem para todo o lado
galinhas, patos, pombas e um melro velho que um dia fugiu
o pai tem uma coleção de animais selvagens, macacos e leões
o pai tem África inteira sobre as nuvens
o pai viaja sem pagar entre os países
não tem de comprar bilhete
o pai, do céu, aciona os despertadores dos relógios na Terra
põe o rádio alto pela manhã, bate palmas para acordar e levantar toda a gente
o pai quer trabalho para toda gente e toda a gente a trabalhar
resmunga
resmunga
depois junta-se aos anjos para uma cartada e
ganha sempre
depois
senta-se numa interminável mesa a petiscar sandes de presunto, bolinhos de bacalhau
aos pés, uma grande grade de cerveja
e os olhos brilhantes, brilhantes
um sorriso eterno e descansado nos lábios
uma vídeo cassete de vida selvagem
pisca o olho e dá uma gargalhada
está feliz
está 100%
ponto
March 7, 2020 § Leave a comment
pega
estou cansada de andar por dentro deste livro
sem as tuas mãos dadas às palavras
tudo são caminhos desconhecidos sem o teu olhar
tudo são lugares inóspitos capítulos sem rumo
mas se me deres o teu corpo ao virar da página
talvez consiga ler nas entrelinhas
a história de lugares habitados
por onde me possuís entre os parágrafos
arborizados da viagem
segura
carne vale
February 25, 2020 § Leave a comment
despes-me e reconheço-te
visto-me desde a tua pele interior
e agora que me tomas os pulsos
a veste desde o avesso e puxas
as veias com que costuro o meu corpo
fantasias-me?
agora que rompes estes fechos
abres-me a carne desde o começo
vertes teu traje sobre o meu vale
pergunto desmascarada à perfeição
amor
quando tocamos de corpo?
o amor
February 15, 2020 § Leave a comment
amor
do amor
todos os dias sou do amor
do amor a chama a perseguir-me
dele sempre
ainda que de mim queira morrer-me
do medo que vivo as estações resolvidas
os dias regulados desconjuntados dos meus
que careço na alma a perfeição momentânea do amor na irritação dos dias cinzelados para as coisas
as coisas penhoradas nos dias inexistentes
as invenções felizes nos calendários tristes
sou do amor quando penso o nome
o amor que tange os meus dias irresolutos
contraditórios e acidentais
o amor nos dias incompletos e imprevistos
o amor verdadeiro que me encontra
reconheço-o e desfruta-me
torcionário suave na morte que me aplica
terno da minha efémera serventia
o amor
odds
February 6, 2020 § Leave a comment
talvez os pássaros
aplique aos pássaros esta amorfia
que careço a seda da ave que falho
o deslizamento migratório que escapa
sou a bruma
sou a bruma que encobre
mas eles o sol negro que alucinam
que o meu fantasma no lago tem olhos
passa os dias a contemplar a treva
no limite, resta a superfície a espelhar-me a face
a paisagem aquática
essa que é o prenúncio geminado
talvez o fazedor saiba o metal das aves
já que sabe de cor pedras e valas
lê os lodos e as sedas e as miragens
nada disso o intimida
talvez saiba de mim qualquer vertigem
compreenda esta bruma irrespirável
a faca contínua na atmosfera
o metal que transpiro
falo do resvalar laminado
da luz lacerada na carne da fronte
porque depois só o rosto
ainda mais indecifrável, submerso
a ferida aberta sem língua
os pássaros debicam fruta na árvore
enquanto planam o tempo da descida
escorrem o doce dos bicos antes do voo
careço desse açúcar
logram o meu olhar desfocado de crosta
adocicado de sangue
orbes sem pálpebras na desfocagem do bando
no afogamento do suco
se atiro os braços agora esta dor contorcida
desce a sombra condoída sobre o espelho
e a minha boca húmida ávida cresce um poço
abandono a cabeça
vejam só as aves como voam
contorcem-se naquela velocidade negra tão suave, melodiosa
dançam como a paz e o silêncio da morte
um maná de penas de ossos e de força
o bando inteiro o céu
vejam só
como dançam, seduzem
tu, açulador de sentidos sente-me a garganta os pássaros
que vivencias? tomas da minha boca rasgada
como voam ondulam negros as lanças
como lhes espero as asas
alguns, ainda pelo canto do olho debicam bagos na árvore serenos
antes da chuva dentro das minhas mãos
antes da acidez do medo adormecer
não tarda nada nenhum na árvore
todos dentro de mim
não tarda nada outra massa
outra massa que ondula
e este vestígio de sangue no lábio
alquimia
January 23, 2020 § Leave a comment
ainda não ergui as paredes da nossa cidade
ou galguei as muralhas
mas quero
um mapa quente apertado na mão e um punhado de vento suado
e tu pelas vigias
e eu pela mão das paredes carregada de versos
transpirada de bichos
escorrego-te os olhos
circundo-te
sentes o meu verde o meu vento?
é a minha face arrastada de pele pelas tuas poeiras
se abrires a boca, muito – um oásis
-, respiras-me e perfuro o teu barro
todas as pedras que trago dentro
chegarão para construir torres altíssimas para os nossos pássaros que ainda não chegaram
mas vejo-os daqui – como planam, esperam
atravessam devagar o céu até morrerem, pacientes
a escuridão dentro dos olhos
arrastados de planícies pelo azul que não existe
a eternidade desce com o Sol – alquimista -,
e tenho os peixes nas mãos para nadar o ouro
o fundo na seiva das raízes
se descer com eles a correnteza
as veias até à profundidade
as minhas escamas pelas tuas folhas
até aos alicerces do que ainda não começou
agarras-me forte pelos cabelos para que não fuja?
algemas-me os braços ao mesmo sonho antes que adormeça?
banhas-me de luz antes da noite?
luxação
January 13, 2020 § Leave a comment
Parto do amor mas regresso sempre
demitida o sopro o suor a mágoa
as pernas nuas pelo vestido
como se na corrida me chovesse
e o vento nos joelhos me entornasse
despida fosse a cor da minha roupa
a roupa fosse a dor de estar vestida
e o sangue pela carne transbordasse
a velocidade louca de ser água
na fonte do ardor endoidecida
saudações natalícias
December 24, 2019 § Leave a comment
natal marcela
natal lídia
seja lá o que isso for
desejo-vos daqui da cozinha
enquanto esticas a perna
e tu distendes o braço
deixa-lo tombar sobre as águas
eu golpeio um dedo da cor do garrote do velho inventado
uma faca
um lago que escorre da carne para o sifão
da dor para o esquecimento
dos homens para o mundo
do meu dedo acordado para o natal ferido
um lago que mirra como já morremos todos
que eu não tenho oferendas
do teu pé tão descalço marcela
do teu peito tão nu e culposo lídia
do natal tão vazio de naturalidade
rasguei o pano e agora esta cavidade enorme por onde entra e sai o mundo
entras tu à procura do teu natal esta é a tua casa entra
que chegue pela noite dentro coberto de braços
e tu a espreitares esse outro
aproximado da paisagem dos sonhos coberto de acenos
misturo-os e é o natal exato perfeito que não existe
é o mundo que entra para nataliciamente foder-nos
enquanto esticas a perna e tu distendes o braço
eu descolo o peito
aqui o bacalhau é mediano como os homens
crescido como os sonhos
egoísta como a fome
e as azeitonas mistas todo o ano no vértice do meu dedo
rodam
que não cessa o natal ferido uma espinha sem dorso
um hematoma sem fundo
que eu não tenho prendas do teu pé tão descalço
do teu peito tão pisado e nu sob a frontalidade
desse nome tão vazio que escorre para o sifão sangrento
que entope o mundo da mesma janela
gemei que já vou depois disto tudo desculpabilizar-vos tratar-me
enxaguar-me desta miscelânea de esforços
natal natal marcela paciência
passar-te a mão assim tão levemente
subir-te o corpo como a uma estrela
enquanto lá fora a noite aumentada deste furto
um bréu que esconde o sangue
é o natal lídia a pentear-te o cabelo como um polvo
depois do natal limpar a barba ao linho
tchau até pró ano despedir-me, despedir-se
o mundo atrás do pano
a culpa o garrote no ralo do sifão da pressa
enquanto esticas a perna e tu distendes o braço
natal natal palmas
sobe e cai já se foi
até pró ano
agora é a louça e o menino na banca da imaginação retalhado
podes despir-te Marcela que não te vê
já enxaguei a banca e estou quase
quase seca quase morta quase aí para lembrar esquecer de novo
este golpe mediano como tudo
a cor do sangue
o mundo a sair já exangue
natal marcela podes deitar-te acabou
deitemo-nos sob o luar da janela
as duas as três eu inteira do sifão para fora
lídia recolhe as tuas mãos geladas
mete-as depressa à boca aquece-as com o teu avesso
que a tua boa vontade é egoísmo e baba e óleo
e o meu sangue quente já mirrou no pano
e o sonho é um barco afugentado longínquo
um trenó puxado por peixes cravado de trilhos
natal depressa
natal perdemo-nos
que o mundo mirra por fora do teu nome
o amanhã some-se sob o casco da rena
o meu dedo na tua boca marcela lambe
o pano sobre o teu peito Lídia morde
o teu nome um rio de sangue do meu dedo
frio como o menino que escorre
amanhã lavo os tachos ou nunca
que o mundo é tão sujo lavo antes a estrela
enquanto esticas a perna e tu distendes o braço
que se lixe a louça e estes maus cozinhados
venham antes jericos vacas e ovelhas marchar sobre tudo isto
animais extintos ou desconhecidos mais natalícios por isso
uma jangada de bichos do meu dedo para o sifão para salvar o menino
o mundo num rasgo, num golpe natalício por nascer ainda
lavo antes os dentes e depois se ainda natal e apetecer-me
ou melhor tudo menos natal e todos salvos até o próprio deus,
podemos sempre juntas foder-nos para aquecer esta quadra
até o dedo exangue festejar o reinício
que o sonho voltará sempre amanhã lídia para o jantar para o lambermos
já disse
porque nada se concretiza desta vontade golpeada
chega-te a esta fogueira já a estas achas de raiva
vem acender o corpo arder a casa inteira e estendê-la ao mundo
o nosso lume um oceano natalício do sifão para fora
podes despir-te marcela que não te vê
natal natal e o menino na crista da onda palmas
na prancha do dedo
no fluxo do sangue
até esquecermos tudo isto
esta necessidade plástica de nomear nascimentos
desmontemos a árvore para uma verdadeira
a casa para um lar natural
ainda que nós sempre as mesmas e de faca em riste
a lembrar o escusado natal
com este dedo ferido
noctis
December 13, 2019 § 4 Comments
se me deito, rompo as vértebras e lanço-te os braços do peito
e tu olhas-me indolente e doce
e caças-me os pulsos e suspendes-me na noite
das tuas cordas invisíveis
e eu fico assim dependurada dessa ideia um tempo infinito
de ser a tua pupa estelar, oscilante no espaço
com a minha carne iluminada por dentro do teu silêncio
e se vibro e gemo pelos meandros dessa tua calma
tu torces-me vagarosamente na obstinação do vazio
até que dum repuxo expludo e verto-me de seiva luminosa
um coágulo de leite que do ventre deixa-se orbitar
parir um rio pela via láctea das tuas mãos transparentes
anéis pela cintura das horas húmidas
e dissolvo-me sobre a tua fronte inexplorada
sabes bem
que trago comigo nebulosas virgens amamentadas de medos e que
com elas sobrevoo a tua permissão e colonizo-a
e à tua carne convulsa de mansidão inventada
porque o meu corpo é um astro no sustentáculo do amor
e tu sabes
que somos vestes instintivas no interregno das poeiras
assim, antes da obscuridade, permito-me horas a imaginar
que velocíssima detono galáxias à tua frente e que me habitas
horas suspensas na fruta que amadureço à tua porta
aflijo-me muitas vezes com isto dos teus mistérios
com as marés das minhas profundidades tontas
mas depois tu revisitas-me tímido e tranquilizo-me
de saber que quando me deito
já te encontras à minha espera dentro da noite
inépcia
December 8, 2019 § Leave a comment
é domingo
sou um oceano emparedado a nado do silêncio
água contra pedra ida contra regresso
e esta barbatana encravada no ombro
igualzinha à tua asa presa
é um peixe roxo por dentro do osso
atiro o coágulo numa braçada de água contra a ave estacionada
mas é domingo e a velocidade é uma espinha
o mar é náufrago das marés
ida contra pedra regresso contra água
evapora-se
na manhã engaiolada em que o amor é uma âncora
os cardumes dormem e as aves não desovam
aliena
November 6, 2019 § Leave a comment
não sou do vento não sou da chuva
não sou sequer do tempo de mim mesma
nem das flores eu sou nem sou da música
nem das árvores nem dos olhos nem dos gestos
não sou da existência torpe, sôfrega e vencida
aquela que se entende próxima, segura e certa
não sou do pensamento compreendida
não sou mais que uma ilha longe terra deserta
se julgam que me podem então não sou
se julgam que me sabem então não dou
sou mais longe que o longe onde não estou
se entendem que me entendem então eu minto
se entendem que me mostro então pareço
sou mais longe que o espaço que desconheço
cadunt
October 27, 2019 § Leave a comment
a tua cor chega do interior da pele como o outono
a terra abre a sua boca húmida de sangue, deita-se para trás
solta a sua língua silenciosa com que escava a terra e ascende às árvores
assim mais ou menos como eu
quando me distenso lânguida sob o teu corpo
cavas um vale profundo por mim adentro que ergo e rejuvenesço
como se a terra levitasse
chegasses súbito de dentro da estação primeira
comigo já assim madura, colhida do tempo
pousada sobre a palma infantil da tua mão
uma semente oferecida e evaporada
demasiado simples esta idade das coisas
como a natureza se aproxima e se retrai
recobra e se renova a si mesma
como chegas e inicio-me
penso
se a terra recomeça também tu me regressas à primavera
com árvores açucaradas enterradas no peito
quando te aproximas folhagem, fruto, semente
para remexeres-me desde as raízes
a terra abre-se e tu colhes-me
do ramo mais alto com o vento estacionado, inclinas-te
vagarosamente
num recorte de azul ensolarado para povoares de seiva o meu sexo
desaguas, chegado de todos os lados como a transpiração
para me tomares como um fruto inseguro obediente à luz
uma árvore ruborizada
uma árvore de sangue
uma árvore aquática
uma boca atónita
contra um solo de carne entorpecida
delicadamente brotada para o espaço firme da tua plantação
a natureza move-se, tu tocas-me, eu acordo
pela altura certa de já ter crescido um extenso pomar
de todas as sementes inesperadas que experimentamos
serem já demasiadas as árvores para visitar
os frutos demasiado altos para colher
estarei perdida meu amor nesta imensidão
ou reencontrada nesta terra tão fértil para compreender
chega-te por isso e ocupa-me mesmo assim, ensanguentada
que este nosso outono é de terra, raro e perene
é tão macio e tão doce, como se chovesse sol de dentro dos frutos para a nossa boca
e engolíssemos juntos o açúcar gerado da felicidade
de nossas línguas emaranhadas
fechássemos os olhos sob a luz e adormecêssemos
brotados da ampla planície que retornou despida
ao colo da estação extenuada que deu fruto
sabes
acho que somos deste campo aberto
duas ocultas primaveras nuas
lignum
October 9, 2019 § 3 Comments
escreve uma árvore
escreve-me uma árvore e desenha-me um poema
escreve-me uma árvore, folhas, letras manuscritos de palavras
uma sublimação esverdeada, livre e espontânea
escreve-me umas asas
uma montanha que voa
uma montanha elevada e uma árvore tamanha
frondosa alta e recortada
uma copa farta à deriva num vendaval de letras
um pincel à toa de palavras
deslavado em calhetas
vá
desenha-me essa árvore desenha-me um poema
uma pauta musical de chuva
aves abrigadas no arvoredo
ninhos
versos
telhados espelhados na brisa
apanha-os e descansa-os
coloca-os na segurança do refúgio assinalado
no teu mapa escorrido
nessa árvore
no meu universo plantado na ramagem
escreve escreve
escreve-me um livro
rematado
complexo
escreve-me um trilho
uma estrada
sentida e gigante que entenda
verso a verso
folha a folha
água a água
um aguaceiro de verde e sombra matizado
escreve-me uma árvore
descreve-a alteada
cavada em mim
submersa na minha tempestade de abetos e silêncio
vá
desenha-me
isso
devagar
devagar desenha-me
desenha-me
escreve-me assim verde e alta e molhada
o caminho
o firmamento pintalgado
estrelas e sol
vazio e luar
a árvore nua
a árvore recortada e acordada na noite
delineada e vigilante
e a tua mão em desatino na escuridão
escreve-me uma floresta de livros e de sossego
uma fuga repentina das prateleiras e dos medos
das frases encasteladas
a árvore
tempestade de folhas e neblina
tu
um tapete de terra molhada e mansidão e nervos
cores e purpurina
o mapa das estradas
estreitos e nadas
escreve-me essa árvore
escreve-a e desenha-me um poema
a árvore que eu quero
que adivinho pura
seiva
a árvore pungente e inadiável
a árvore altíssima
verde arreigada no teu nome
escreve-me um poema
um ninho
colmatado
perfeito arborizado
a tua ausência em desalinho entrelaçada nas raízes
horis
October 4, 2019 § Leave a comment
as minhas horas
são feitas de espaço e de paisagem
não há medida nas minhas horas
não há aragem
os ponteiros são passos
as anotações esquissos
as minhas horas são letras
são estrupícios
não há espaço nas minhas horas
não há medida
nas minhas horas não há chegada não há partida
sei de cor o tempo do meu espaço
sei de cor a hora
sei de cor o tempo de cada ausência
se chegar demora
minhas horas sequer são minhas
sequer são tuas
as minhas horas são apenas letras
são apenas vento
não há mistério nas minhas horas
não há loucura
as minhas horas sequer existem
sequer as tento
as minhas horas são almas livres
são argumento
não há urgência nas minhas horas
só conjuntura
observatorio
September 12, 2019 § Leave a comment
plantar barcos de flores em agras de viagem
apenas para singrar nos olhos as marés
içar corolas à boca solar do desconhecido
depois talvez numa nuvem prenhe
na lambedura espumosa de um mastro
entenda deus um caule afiado de raiz temerosa
e apenas de sentir-se assim desconsiderado
chova enfartado qualquer estrela sobre o convés
retempere o campo do peito semeando-o de luz
e o vento de feição restaure de verde a maresia
a fé nas mãos sinistradas do estaleiro do amor
um
August 30, 2019 § Leave a comment
vou ali
colher uma flor
olhar um pássaro
observar um barco
apanhar uma pedra
escutar um rio
tudo isto eu farei indo simplesmente ali
como quem fica a imaginar apenas que vai
e entretanto passa um bando
que não vi
sobre um rio que não escutei
estava no meio do jardim que não vi
a procurar entre as pedras que não sei
bem
como não fui
regressei sem a água e sem a flor
sem o pássaro que levou a pedra que não apanhei
corri mas estava sozinha e não me mexi
que agora existem todos sem mim
que já não vou
desisti
floração
August 22, 2019 § Leave a comment
enquando te falo deste jardim e das suas espécies
divagas sobre as flores antigas dos campos vedados protegidos dos vendavais
nada posso contra a antiguidade ou contra essas raízes que se perpetuam frágeis
e nada tenho contra os relógios estagnados das paredes oblíquas
seguro o meu vento com o peito aberto arrasto das pedras evaporadas
enquanto agarro estas nuvens desde as ruínas com que regarei a suavidade
das líquidas florações
e enquanto tudo se alaga por dentro e por fora dos gestos
em círculos de miragens doces a pique do céu
os botões tenros que guardo aqui sob a tua luz descendente
que ainda não sabem o nome verdadeiro das florescências
esbatem-se no campo aberto das bocas descerradas e caramelizam-se solares
enquanto chove
devagar
a par dos rios vagarosos que se deixam levar por dentro dos olhos
ao mar da rebentação
porém
tenho sérias dúvidas como sérios contentamentos
sobre estas e aquelas irreflectidas plantações
de que são feitas
o que retiram da pele remexida desta terra
de que forma a tua sombra se curva sobre as corolas
encosta o peito às vértebras da felicidade
docemente ou condoído
frívolo ou amedrontado
de que jeito se encaracolam os corações no frio da solidão
as folhas sob o sol terno do teu olhar desgarrado
a musica do teu riso à sombra da hesitação
até onde se distendem as raízes desde os abetos dos teus dedos
a contorcer a dor por dentro do inatingível
qual o verdadeiro sabor que goteja da tua sede lenta sobre esta aridez partilhada
quando te falo de amor humedeço-me por dentro
enquanto falas do tempo com sementes dispersas e aquáticas no olhar que
enrolo na boca desde o teu sexo
para desbravar a pele entre as deslocações nestas minhas nossas
furtivas semeaduras de irrepetíveis estações
e sei tudo isto a remo dos ponteiros dos teus dedos
que tudo leva o seu rumo e que nada nos pertence mas que tudo de ti me completa
enquanto sais para regar os campos antigos nas horas concebidas
comigo deste lado de mão dada aos trémulos rebentos da primavera
se me perguntam se demoras digo-lhes que não, que sim, talvez que sim
que sim mas que falta quase sempre uma estação por dentro da saudade
que é uma sede indecisa numa brisa que se dilata por dentro do verão
e se sacia lenta da espera condescendente e húmida
que ao virar da esquina o futuro vem de rio cansado ao colo
a arrastar os pés pela margem mais embebida do mar
de olhos fixos no fim
digo-lhes isto para que chorem
ou me chorem
ou talvez ainda para escutar-me nervosamente
que se acertarem o teu nome por dentro da água ensanguentada do coração
terão um dia um lugar assinalado no mapa da floração
ou não
mea
July 18, 2019 § 3 Comments
espero-te sempre
meu amor
como um verão inseguro
a par da estação
a tocar-me tão ao de leve
tu
meu amor
e o presente
sempre um tempo que não chegou
assim anoiteço
assim me embalo nesta tremura
no desfasamento destas nossas proximidades
meu amor
ou então
no gesto de uma pedra ao mar por atirar
quero dizer com isto que me faltas
que mergulho sôfrega meu amor
de dentro do gesto contra o vazio
nesta granítica solidão sem balanço
enquanto o sol brilha o teu rosto inatingível
e pareces-me verdadeiramente verão
e o mar um quase inaudível rumor
da tua voz submersa
assim sou eu
e estou
a esperar o teu gesto preso à contemplação tangente
meu amor
meu amor
cibus
July 5, 2019 § 2 Comments
como se não fosse por ti
de caminhos crescerem as árvores e as casas e o universo respirável
e não chegasses para explodir o mundo depois dos beijos
de tudo tão enlevado e triste e supremo e verde
com cães nas ruas a ladrar às fadas
que nos fazes depois da luz, da carne, da semente, da ave no cabelo
à bomba que nos pões no bolso?
treme-me a mão a latejar-me o peito
para onde te arrumas depois de ofegares, explodirmos
e aos destroços, o pente, os olhos nas feridas?
já não eram eu sei, nunca fomos, seremos, depois de despidos
os relógios impossíveis tão só a tua liberdade licenciosa
musgo e sarna na pedra a martelar as línguas
até desfazer-se a pele, azedarmos o leite na perna
o dialeto menstrual avançar exércitos silenciosos
trazes-nos já estupradas com valas no peito?
o teu perfume na baba ainda? a lamber-nos o joelho,
as mamas em cataratas de fogo no júbilo do teu sémen?
estou à mesa e uma toalha de sangue,
cotovelos e um garfo no olho impaciente
para onde olhas? que enxergas debochado?
as nossas bocas quentes, quase? o mundo afogado
a mastigar-nos ronceiro, açucarado nesta festa quente?
somos húmidas no teu celário, sei sinto
pulsar a costura das planícies contínuas,
lagos parados e tu a mexer-nos as cavernas
as folhas escuras no útero
ainda assim dás-nos de comer sob os incêndios?
nem que fome e espinhas sempre? e a sede inflamável?
domes-ti-cidades
June 7, 2019 § Leave a comment
nos dias de mendicidade
limito-me a fazer barrelas do passado
a limpar os vidros do futuro
a requentar o presente com o lume dos outros
dedico-me a domar-me pela tua cidade
com os bichos ao peito
fazer-lhes festas com o pé
lamber-lhes o pelo com o sexo
dar-lhes de mamar a minha língua
estou de passagem
pelas pequenas grandes humidades alheias
prosseguir é masturbar-me com o tempo na aspiração do espaço varrido da casa
como tal, nos dias miseráveis
limpo as cinzas dos cigarros que não fumo
faço nuvens para regar os vasos
mendigo-me
e dou-me esmolas
venho-me no pó e nas sopas da má catadura
fusus
May 10, 2019 § Leave a comment
o teu amor
é de incontestável silêncio
e apneia de luz
assim, quando te distancias eu escureço
seguro o teu rosto como uma candeia
com que atravesso a noite bamboleando o teu nome
à medida que suturo os gestos
os teus ombros
as tuas pernas
o teu sexo nos passos
enquanto comprimo a tua cabeça entre as minhas coxas
para alumiar o amor
para ordenhar o caminho
rosas de maio
May 1, 2019 § 2 Comments
as rosas de maio
florescem nas torres mais altas
dos homens mais altos, das sementes mais fundas
por isso,
os homens galopavam rápido,
montavam bestas na perseguição da terra,
desbravavam de cascos a trajetória,
as veias na pulsação da humanidade
e chegavam com bestas nos braços,
os ossos quebrados de cestos de flores
eram tais homens que edificavam o mundo,
martelavam ferozes o futuro na leveza das pétalas,
os caules que sustentavam os saltos,
impulsionavam as subidas
eram eles os plantadores dos jardins mais altos e inalcançáveis
exatamente os mesmos plantadores de hoje
e as torres, essas, fixos planaltos,
balançavam os corações das corolas,
crianças plantadas num vento maternal, embaladas,
o peito azul leitoso na liberdade
porque partiam contínuos, irrefletidos, instintivos e puros
partiam permanentemente ainda que não voltassem
velocíssimos, trabalhavam excelsos essa lonjura
a proximidade da alma à essência da terra
partiam vagos mas seguros, montados no coração das vagas
e galgavam as próprias torres com a carne ferida
aberta de lava, até ao último perfume inocente,
a última gota de sede
e tudo era sanguinário, preciso e belo
a formusura brotada do sangue e da luta
e tudo era corações de fogo a proteger
e tudo por um futuro isento e assegurado
e tudo eram eles
e eles dentro de tudo eram tudo
as rosas de maio nas torres mais altas dos homens mais homens
era assim
e as crianças cresciam das bermas e aproximavam-se
não tinham medo das torres nem dos homens de lume
escalavam a pedra e a carne como botões verdes,
e equilibravam-se felizes,
bailarinas sobre as vigias levitadas,
o corpo imaculado entre as roseiras,
o peito ao longo dos parapeitos de luz
assim penso que era
como penso agora as mesmas as torres, ainda,
só que mais baixas dos homens mindinhos,
das sementes mais deslavadas e desvalidas
os homens
que ainda galgam canteiros espelhados de serranias
ainda os mesmos,
dos mesmos fantasmas,
ainda deles as mesmas torres,
delas o corpo da poeira e da folia
e as bestas saudosas, as mesmas ainda,
velocíssimas, recuadas, retraídas,
a arriscar o retorno por atalhos de melaço
um dia vão encontrar-se lá trás com este futuro
e as rosas ainda delas, fotográficas e sublimes
a ajardinar o passado gigante nos retratos
e as crianças, bailarinas ainda,
mas tristes entre as valas,
as cortinas das giestas,
intermitentes na prata do cascalho
têm os olhos postos nos cascos das bestas
e não os tiram, que elas não mexem
se pudesse regá-las a elas e às rosas sem ser de sal,
pela única, derradeira esperança do derradeiro campanário
a gota ainda latejante do inerte, ainda o mesmo plantador
talvez ainda uma semente que restasse,
uma roseira por brotar na pedra de qualquer torre
remus II
April 17, 2019 § Leave a comment
porque amamos demasiado o impossível
colocámo-nos céleres na boca do amor,
nus e do avesso para fora da carne
só para beijar na língua o precipício
trilhar o lábio no dente da escuridão
rapidamente desentender essa dor que aguçamos,
descemos mélicos pela escoriação
no fio frágil do sangue
amamos
e porque somos ininterruptos
essa dor masoquista insiste
persiste na aceleração das aves
no prazer delineado pela semente açucarada,
a avidez vertiginosa no bico da quimera
aves pré-históricas, flores carnívoras, feras desenfreadas
somos nós, rápidos
amamos
e porque amamos demasiado a loucura,
de sofrer trajados essa cegueira
guia para as funduras do peito
pelos atalhos das cidades encantadas,
brotamos pássaros azuis dos gestos ávidos
e cardumes fluorescentes da tremura do pânico,
e povoamos o céu com toda a felicidade desse medo
amamos
e assim na fome, pela foz diluída do esquecimento
o coração leitoso atravessa o oceano dentro da espera
sozinho na barca latejante do início
mais tenro que a rendição transparente do corpo
mais doce que a humidade gotejante do amor
mais crente que o amor imagina
que o amor leitoso pelas ondas da invisibilidade
viaja o impossível
ao encontro do amor
no desespero do amor
e imagina tudo possível
enquanto rema
autem II
March 27, 2019 § Leave a comment
a felicidade tem uma luminescência tua que dança comigo
campos rodados de flores e árvores nas minhas carnes noturnas
lagos que perfuro embriagada das tuas mãos
todas as madrugadas cuido
todas as madrugadas são solares e deito-me na tua calma,
lavro o teu tempo no meu campo orbicular de flores
são as estações pelo júbilo transpirado e circular,
circunscritas,
de ti circunspecto como o sonho a infância e a tarde
e todos os lobos interiores sitiados neste lume ululam,
celebram para lá das fronteiras clareiras novas
e se me assustas
construo depressa uma casa e largo-lhe dentro um sol,
solto a pelagem da matilha e estremeço por dentro
porque sou quase gente quando mordo ou quando agonizo,
injurio-me e entristeço-me
sou simples, é isso
simples como tu
quando demoras o tempo exato de eu engolir o que sinto
o mesmo que levo a apaziguar qualquer padecimento
o amor
o amor trespassado de trilhos e feras tresmalhadas
caçamos ou fugimos?
todas as madrugadas festejo-te e danço-me
enquanto te interrogo sobre como vão os campos
e respondes-me sempre com o teu silêncio
que vão bem e que estão preenchidos de códigos e flores
e grito reconstruída essa felicidade num contorno de lágrima
o projétil perfurado no meu peito inaugurado de vítima
porque existires às vezes basta-me
e do telhado cresço uma janela espontânea que não vês
de onde me vejo escancarada numa ave que chega daí,
às vezes um inseto desgovernado na luz que me tange,
morre logo depois como a lonjura
um movimento que morre como eu morro
são as tuas mãos que me fecham me perdoam e salvam,
tremem o contentamento e ressuscitam-no do medo
enquanto descerro os lábios para beijar-te
acho que me conheces bem e ao meu paladar
somos velocíssimos nesta dança obscena
e a felicidade esta fera amestrada e amedrontada,
e as nossas línguas lavradas pelo mesmo lanho ferido
e evaporamos campos e lagos néones, etéreos
e voláteis que quase perecemos neles
nus inauguramos a espécie
e nada mais importa que esta embriaguez sobressaltada
desfalecer para reconstruir de novo
opium
March 7, 2019 § Leave a comment
todas as flores se tornam incompreensíveis sem a tua presença
como barcos subitamente avistados repentinamente submersos
naufragam vazias no betão
quero dizer que é o amor
e que simultaneamente me angustio com a fragilidade das distâncias
e porque existem flores
tenho saudades e outras coisas indecifráveis como pedras, folhas
caules e raízes à deriva na solidão
papoilas
cujas pétalas são a tua língua que se repete
de encontro ao céu da minha boca
e a humidade uma chuva lenta num lugar de insanidade
assim tento entender a ordem do mundo
alternando a ordem das flores num campo aberto incendiado
qual é a primeira papoila? sendo tu sangue na planície inóspita?
e espero
e espero
e espero
enquanto o amor dá voltas às raízes escalando o caule da vida
depois desisto
de serem mudas as coisas dentro delas mesmas e das repostas
e os barcos terem já partido ou nunca sequer terem chegado
para que lado se move a flor na estanqueidade do sonho?
para que lado verte a seiva do nosso amor?
para que lado caminham as raízes do coração?
sendo tu primitivo caule, fonte da inaudível saudade
e tu papoila
amor à procura de terra nesta miragem de chão
iter I
February 9, 2019 § 1 Comment
eis a beleza abrupta do início
pequeno barco na rota dos pés
dá-me a tua mão verde para o aplauso
para navegar o começo
que é do princípio que me dispo
que é da partida que te colho
qualquer palavra muda na faina
eis que partimos, musicais pedras,
espécies intraduzíveis, corais
ao fundo dos peixes das flores
eis muitas ilhas à esquina do amor
escarpado fim
dá-me a tua mão azul magnífica
e não te apresses solar, náufrago
na jangada de luz
na violência feliz de aportar
guardo comigo a obstinação solene de uma árvore
o mastro atravessado no peito da planície
e a quilha ao leme da respirável terra
assim, espero-te
rasgada pela costura do mar,
boca desfraldada, o teu dedo a prumo da paisagem
martelo húmido à vela no cabelo
eis que somos deuses e inauguramos juntos esta miragem
eis o navio à proa do sortilégio das marés
deixa-te inábil, sobreposto
na barcola da pele em que me largo
e que te prenda apenas o vento vertical
a veia na inquietação do sangue
guio-me pelo fluxo dos teus lábios
pelo pulso dos teus olhos
e emerjo à tona instintiva das vagas com a memória
essa fome espumada no vício da tua língua
assim, cobre-me de cuspo ou espuma ou febre
e estende-me as cinzas em inflamáveis gestos
um braço, um ramo eternamente jovem até à ilha do fim
onde firme os dentes no nervo da terra descarnada
que é violenta a planície do amor
e embriagado o arrasto no respiradouro da paisagem
e eu, sou pulmonar no convés da fraga
se respirares devagarinho bem ao de leve
decifrarei no hálito o caminho,
entrarei mar adentro pela fenda nua,
a ferida aberta da largada
remus
February 1, 2019 § Leave a comment
porque amamos demasiado o impossível
colocámo-nos céleres na boca do amor,
nus e do avesso para fora da carne
só para beijar na língua o precipício
trilhar o lábio no dente da escuridão
rapidamente desentender essa dor que aguçamos,
descemos mélicos pela escoriação
no fio frágil do sangue
amamos
e porque somos ininterruptos
essa dor masoquista insiste
persiste na aceleração das aves
no prazer delineado pela semente açucarada,
a avidez vertiginosa no bico da quimera
aves pré-históricas, flores carnívoras, feras desenfreadas
somos nós, rápidos
amamos
e porque amamos demasiado a loucura,
de sofrer trajados essa cegueira
guia para as funduras do peito
pelos atalhos das cidades encantadas,
brotamos pássaros azuis dos gestos ávidos
e cardumes fluorescentes da tremura do pânico,
e povoamos o céu com toda a felicidade desse medo
amamos
e assim na fome, pela foz diluída do esquecimento
o coração leitoso atravessa o oceano dentro da espera
sozinho na barca latejante do início
mais tenro que a rendição transparente do corpo
mais doce que a humidade gotejante do amor
mais crente que o amor imagina
que o amor leitoso pelas ondas da invisibilidade
viaja o impossível
ao encontro do amor
no desespero do amor
e imagina tudo possível
enquanto rema
receptum
January 23, 2019 § Leave a comment
agora meu amor
é simples
é olhar em frente para andar para trás
e quer isto dizer
trazer o mar à fonte impossível pela borda do peito
mergulhar os olhos para lavar as mãos
correr para esconder o corpo
porque agora
meu amor
em que me vês
não sabes que ainda sou invisível
e que o silêncio é uma espécie de recuo
para encontrar-te
noctem
January 17, 2019 § 2 Comments
era noite
o coração das meninas sangrentas subia e descia a roupa nos espelhos
como gatos vermelhos, pintados de azul
pintados de amor, desfolhados de vidros e flores
era noite
e as magnólias abriam bocas pelas frestas carne
que abriam e fechavam olhos nos olhos
nos lagos da noite, como lábios feridos
como pernas descontroladas no vento
lábios que pendiam e lambiam a água na água do vento para matar a sede
pernas que corriam e procuravam caminhos e se perdiam
portas por onde entravam e saiam corações húmidos, ou gatos exaltados que afligiam
ou membros desconjugados que suavam
ou sonhos submersos que emergiam, que subiam
que desciam torres que pousavam
era noite
e o coração das meninas sangrentas batia a pique nas constelações
rodava maçanetas dentro e fora da bruma para deixar entrar a luz aquática do mundo
abrir o espaço ao espaço descerrado do amor
era noite
e os gatos subiam e desciam irrequietos o suor, o cuspo, os braços
o êxtase por dentro e nas pausas da apneia transpirada do amor
das mãos nas mãos doces, perfumadas do amor
era noite e era o amor
e as magnólias cintilantes nas mãos, nas janelas
levitavam na bruma a alumiar uma dor antiga
que o tempo de portas e de gatos e de bocas e de humidades esbateu
era noite
e o coração delas batia de encontro às paredes
às esquinas para acalmar a urgência
rasgava-lhes o peito pelo rasgo do medo para deixar entrar o amor
ou deixar sair o amor para respirar lá fora uma árvore ou uma flor de sangue
por onde os corações e os gatos fugiam e regressavam do tempo por dentro e fora da bruma
era noite e o coração das meninas sangrentas pulsava as magnólias
que o amor regava desde os olhos dos lagos geminados,
até às árvores magníficas das raízes mais profundas
magnólias húmidas que se dilatavam, distendiam, subiam e tocavam
e os bichos, apenas vultos de luz
ou de flores luminosas sem tontas inquietações
era noite
noite pura
e os corações dilatavam-se na bruma, beijavam-se longamente
latejavam as cabeças dos gatos velocíssimas
até libertarem dos peitos vagidos por entre as poeiras mais secas das esquinas mais cortantes
as meninas respiravam na noite
enquanto os gatos arqueados subiam e desciam, amassavam, sentavam-se sobre os peitos, estendiam-se, espreitavam pelos umbigos para ver de onde a aflição do amor nascia
mergulhavam as cabeças dentro da carne aberta, para acalmarem os martelos das flores
das mãos polarizadas no êxtase
era noite escuríssima
e barrigas pulsavam, tocavam-se, subiam e desciam brancas como a lua
levitavam o instinto até às constelações,
mergulhavam até aos abismos mais inexplicáveis da frágil humanidade
era noite e as meninas procuravam dentro do sonho a boca do amor
com as mãos, com as línguas, remexiam a humidade mais levitada das margens
enquanto os gatos espetavam as unhas na entrada do nascimento à espera das sementes
era noite
e a boca do amor andava por dentro das veias, desde a cabeça até aos pés a latejar
a beijar as paredes mais íntimas, as superfícies mais leitosas, rendilhadas e interiores da pele
e a boca sempre que beijava dilatava-se dentro delas que empinavam os ventres
arqueavam as costas
faziam uma ponte por onde o amor atravessava quente as vértebras
a carne incendiada no sentido livre do espírito
é noite e não conseguimos dormir – diziam -, não conseguimos, não conseguiremos
porque as unhas dos gatos, às vezes
apanham os cabelos sedosos do amor que vem à tona do sangue para respirar
podem matá-lo só de vê-lo, tocar-lhe,
mesmo que no sentido único e puro do amor
era noite, uma puríssima e inexplicável
espelhada noite de magnólias fluorescentes na torre envidraçada do amor
as meninas pulsavam, distendiam e fletiam os joelhos até os ossos atingirem a luz
ferirem os olhos aguado do amor, quando este fixava os olhos dilatados do coração
que subia e descia cadeiras e mesas de animais puros
arqueados
sobre a ansiedade de beijar a boca velocíssima do amor
bater nas esquinas as descobertas com chicotes de ossos e sangue
se o sonho transbordasse subitamente a pulsação, jorrasse pelo umbigo – pensavam -,
um grande lago de sangue verteria da vontade
e os corações sem unhas passariam a nado sob o arco do corpo em direção à luz
e tapavam os olhos com as mãos abertas
e o amor escutava-as a abrir e a fechar suas válvulas de aguadas bocas
soltava sementes rosadas, desejos saciados do chão ao mais longínquo espaço
e as magnólias nas árvores despidas dos jardins abriam gestos perfeitos
de perfumadas florações de encontro à felicidade
era noite
e as primeiras magnólias abriam e fechavam a boca de encontro a todas as janelas temerosas
como anémonas flutuantes no aquário do mundo
era noite
e as meninas sangrentas transpiravam rios que com as mãos puxavam até ao pescoço para se cobrirem,
afogarem o tempo do amor que as beijava dos pés à cabeça
com os corações nos gatos a latejar, a subir e a descer as paredes de magnólias brancas, crescidas de luares
e arvores a esbracejar a velocidade do amor e das sementes a espreitar de todos os poros
era noite era noite
e a noite transpirava uma bruma sobrenatural para amaciar a sede
era noite e bebiam da fonte acabada de jorrar
era noite era noite
e não beberam tudo
dos gatos dependurados nas magnólias, nas janelas, à porta dos umbigos
ou a espiar pelo arco das vértebras
pelo almofadado das bocas
pelo emaranhado das veias
a subir e a descer no sentido do caminho da berma verdejante do amor
era noite e nunca mais escurecia para deixar adormecer as magnólias
o amor no lago de sangue a tanger-lhes as bocas
entrar-lhes pelas vaginas
pousar-lhes no peito infinitas festas amorosas
noite de magnólias
noite de magnólias doces
gatos que espiavam luas húmidas
mãos tão entorpecidas na vontade
que pousavam gestos à janela espelhada da mais bela e inexplicável escuridão
apneia
January 10, 2019 § Leave a comment
meu amor
quero saber
quando correremos com o vento nas mãos para apanhar os pássaros?
vejo além um
depois daquela altíssima torre
a resvalar a tua mão aberta sobre a minha barriga
olha
como bate as asas velocíssimo que parece parado
com um coração quente no bico para meter à boca
e um relógio no peito para segurar as horas
vá lá
meu amor
é verão
solta-te dessa parede sobre o meu corpo
alcança-lhe o voo
detém a estação
o teu gesto a pique do meu ventre para apanhar os rios
trazê-los de fontes à superfície húmida dos teus gestos
descerrar os caminhos ocultos desta cidade
erguer uma altíssima árvore para regar as palavras
e esculpir um ninho
encosto-me às paredes para escutar a metrópole
chamar a ave
perguntar-te
achas que entende a velocidade deste meu mapa?
elas
December 19, 2018 § Leave a comment
as mulheres acordam e logo partem para as montanhas mais altas
ainda com os pés nos alicerces da casa
atravessam as planícies entre o quarto e a cozinha,
brotam nuas com a água dos desfiladeiros
nos gestos com que preparam o chá e recebem as manhãs
uma pele finíssima descola-se à medida que correm, atravessam a luz
despem-se no vento das divisões da casa
ultra e supranaturais
as mulheres acordam já montadas em altíssimas e velocíssimas éguas
com a nudez dos cascos pousada sobre o dorso do dia
e cavalgam enquanto estendem a roupa sobre as muralhas fugidas do passado
inclinadas sobre os abetos
com suas bocas esventradas sobre as sementes
as mulheres bruxuleantes
as mulheres mais trémulas
em pontas sobre o arame da vida atravessam as miragens
equilibram-se na vertigem do medo
tão delicadamente que aprumam o fio do horizonte com os desertos
de todas as coisas abandonadas
as mulheres com suas ancas musicais esculpem dunas para embalar os filhos
se alguém as reconhece na alucinação
é apenas porque repetem o futuro
estão na reconstrução do círculo dos relógios parados
e é já noite segura quando chegam nos comboios descarrilados
a pele enrugada da faina e um laço púrpura de sonho na pulsação
e é já noite profunda dentro de todas as horas
quando põem a mesa ainda com as pernas abertas na paisagem
os olhos pelo avesso do mundo
as mulheres
só mesmo antes de adormecerem amarradas à fome
recolhem às entranhas os bichos dos descampados
húmidos e mergulhados na sonolência do sexo
onde mamam luas enormes até nascer a manhã
e enquanto se alimentam e ausentam
as mulheres ainda estendem os braços ao comprido dos rios
salvam a leveza das poeiras e a flutuação das superfícies
escarafuncham as luras dos peixes com que humidificam o ventre
a carne alumiada da noite penetrante
as mulheres são rios e pássaros
nidificam aves contínuas no leito descontinuado das espécies
é delas o destino das longas e incompreensíveis distâncias
correr, resgatar novos e inesperados seres do pó da casa
reconstruir da louça o cristal das cidades inventadas
ordenhar dos próprios ossos o leite sobrenatural
lactea
December 13, 2018 § Leave a comment
nos dias desassossegados desato a profundidade,
desamarro os peixes dos pés para soltar as aves
e os barcos ascendem cardumes velocíssimos ao firmamento
nesse tempo,
se me morde uma pedra engulo uma árvore
e orbito endoidecida os ninhos do mar a levitar-me,
a pele pulmonar na prata dum espelho
até desaguarem pássaros nas estrelas,
romper um coágulo num navio
como é? rasgo agora o peito
já que o chão mordeu-me o pé?
o mar na maré da coxa é uma lua húmida,
sorve-me a água por dentro das marés,
jorra-me o sangue pelas narinas
descabelo-me de bichos
se respirar fortemente sangrarei um monte? uma planície? um cavalo?
planetas acoplarão no avesso destas ilhas?
serei habitável sem ardis e velas?
sinto sede,
uma anémona a latejar no arco da boca
fendida na fonte das papilas a crescer um lago,
a língua a tremer um cometa no vazio
será um ovo?
como é? engulo agora? desaguo a espécie agora?
arrasto o lábio via láctea acima?
feng shui bovidae
November 20, 2018 § Leave a comment
sem horas para voltar
as vacas viajam pela noite fluorescente
da montanha, em direção ao mar
deslocam-se velocíssimas, plácidas
tão transcendentes e crédulas
com os dentes rilhados na metafísica do amor
porque as vacas, quando ascendem amorosamente ao dorso do dragão
atravessam com ele, e nele a pele
o coração descerrado do feng shui
que as transporta nas longíssimas viagens que fazem
porque as vacas místicas fazem longas distâncias
amando profundamente os trilhos
e todos os espaços abertos e fundamentais
como tal
enquanto o fazem, assim, magníficas
suspensas na insanidade que se distende
sonham vagamente que são felizes
desde o sangue à terra espiritual
planando altíssimo a imensidão instintiva
no sentido enigmático do fascínio e da carne
enquanto ruminam suspensas a vida
agarradas ao açúcar
porque as vacas espirituais são doces
tão doces quanto violentas e amargas
como todas as coisas belas
e inexplicavelmente puras
como o dragão que idolatram
trespassa-as e incendeia-as na noite
com seu inflamável fôlego
com ele rompem o ar desde o cume mais alto
ao colo do medo impulsionador
e projetam-se absortas contra o início
contra todas as torres subitamente erguidas e esventradas
com o seu cio muito puro e vertiginoso
inaugurando os corpos
ferindo a pele nas arestas do betão antigo
sangrando súbitas janelas na pulsação
e mugem
mugem altíssimo
sempre que o dragão ruge
elas mugem e abrem-se
e ele atravessa o espaço
corta-as ao meio da luz
e elas sangram
no alto espiráculo dos grandes arranha-céus
antes da fome as impelir sobre o abismo no sentido do mar
no sentido do amor, do medo, e da transgressão
que tremem desde o cerne animalesco
do vento e da água hiperfísica
contra todas as perplexidades
ele ruge
elas mugem
e o dragão inclina-se sobre elas
que abrem as bocas e sorvem o hálito penetrante
com o cio ultranatural das fêmeas contagiadas
descerrando pacientemente as pernas sob o dorso
inclinadas para trás
atirando o peito de encontro às constelações
inebriadas no álcool cristalino da alucinação
metafisicamente felizes desde as funduras do amor
com o arco das vértebras em chamas
sob o tórax escaldante do bicho
enquanto sorvem arqueadas o sal
a espuma incandescente
o suco imaturo dos grandes campos alagados e antigos
ruminam e exorcizam delicadamente os peixes
para perpetuar a correnteza da espécie
uma montanha inteira e sôfrega
enrolada no arco da língua
suspensa nas órbitas geminadas
para que não se esgote nunca o suco transcendente
da incompreensível humidade da terra e do amor
pensam tudo isto
e desfalecem os flancos de encontro ao sangue do poente
prostradas
e com o sonho nas mãos da noite a latejar
bebendo todas as horas num só trago de felicidade
com tempo
e sem tempo para voltar
as meninas no descarrilamento do amor
November 15, 2018 § Leave a comment
as meninas sangrentas
esbofetearam-se uma noite inteira por culpa do amor
até caras cósmicas gigantes vermelhas
no sangue incandescente do amor
as mãos esventradas, esferas espalmadas no súbito impacto
da estepe árida sedenta do amor
dobradas nas cervicais da culpa
tremeram
até golpearem as línguas na faca das palavras interditas
amor
amor
amor
acidentais na velocidade
primeiro no medo, enroladas e húmidas
depois nos gestos, bafejadas e tímidas
íntimas e íntimas e mudas e rápidas
as meninas sangrentas
acordaram antes do sono antes da estação do amor
por culpa da culpabilidade do amor
e tentaram recompor-se
à cabeça dorida, vergada sobre o ombro descarrilado do amor
um comboio estropiado na penumbra a gotejar óleo no linho
gemeram e bocejaram no unto a carne
o sangue
a dor
e depois
de mãos soltas, verteram o tédio no mijo
ohhhhh – demoradamente, muito longamente, elas
quentes na noite!
no mijo desnatado da noite
das cabeças quebradas
dos corações forasteiros
dos comboios descarrilados nas planícies profundas
nocturnas como o sangue
abafadas como o sangue
verdes como o nada
as meninas esvaziaram-se completamente
depois perfuraram o corpo deitadas sobre a linha da viagem
até atingirem a rendição sem retorno
as mãos para cima e para baixo no descarrilamento
as mãos para fora e para dentro do descarrilamento
as mãos para cima e para baixo pelo descarrilamento
as mãos completamente descarriladas – Oh!
desvairadas pelo arrasto estremunhado da paisagem nocturna
noite acima, noite dentro
como traças baças e vento
e deixaram-se assim gemer uma noite inteira entre as estações
a tentar recompor a dobra dolorosa do pescoço,
levitá-lo do vinco, alinhá-lo no farelo dos ossos
depois pentear as riças do cabelo antes da estação enervante do amor
antes se enervarem mesmo
antes do amor nervoso na estação
antes delas lá, na estação nervosa
elas e o amor
uníssono nervo estacionado
um pescoço um mastro, o cabelo uma vela na transpiração
lambida do amor alinhado
até lá, uma noite inteira inchada e infinita
um comboio latejante na tempestade
e nelas um pente pela dobra da coxa, um lanho pelo fundo do ventre
a acenar ainda a velocidade pretérita
imparável no espaço atravessado da noite descarrilada
das palavras ulceradas da terra por descobrir
e a íris rasgada no vidro da máquina despedaçada
desfocada sobre a paisagem
a língua golpeada na trepidação do dente nocturno
do dente feio no recorte da vontade por concluir
amarelo linho, amarelo lua, amarelo bexiga, amarelo larva
amarelo tempo
as meninas sangrentas ergueram-se ácidas e amarelas e esfarrapadas
e arrastaram-se remelosas e ajoelhadas para o descarrilamento
trôpegas
foram lacrimejar húmidas na linha
desfalecer o rosto dormente e comichoso no ferro
Oh! É frio o amor? – entreolharam-se e morderam-se
os pescoços inclinados no vértice do ombro da viagem
a escutar de orelha o leite da coxa a trepidar pela linha
a travessia da noite a escorrer pela veia do carril
vem aí! deitem-se!
às pernas pelos tornozelos aguilhoados do amor
e
noite dentro, noite fora, dor por dentro, dor na hora
pensamento, tempo-hora, sangue dentro, leite fora
no pensamento impaciente do amor
no ferro frio da linha quebrada do amor
pelos círculos distendidos do amor
no amarelo mijo do amor
do comboio descarrilado na obstrução coagulada do amor
sangue vivo do amor
sem estação
rete
October 29, 2018 § Leave a comment
vejo algumas vezes o amor no lago abstraído dos teus olhos
se mergulho peixes daqui para aí
se vão ao fundo e voltam
não me dizem
fica no segredo do amor
também
como nadaria eu os teus peixes dentro dos meus lagos tristes
caso os houvesse?
que lhes daria de comer à superfície turva da minha fome?
penso nisto e nos cardumes possíveis e quase cego
não fossem as tuas pálpebras fecharem-se logo
não restariam peixes
ou outra qualquer humidade para a cenestesia líquida do amor