columbae
January 23, 2023 § Leave a comment
Os pombos saracoteiam
felizes à porta da segurança social
Mergulham os bicos nos corpos
e arrulham apaixonados à primavera do amor
A par das comichosas moscas da espera
imploram sorte com a obstinação dos homens
em bando na impaciência dos números
Entre chafurdos espelhados e cigarros,
cinza no olhar enevoado, confiam
nos pomposos peitos columbídeos
contra as insolventes penas sociais
Homens, priscas e pombos continuos
no charco das permeáveis vidas
bicam em húmido acasalamento
quase feliz

CAPITULUM
October 15, 2022 § Leave a comment
Depois de tudo isto meu amor
deste mundo avesso
destas nossas incursões pelo espaço-tempo
Já tanto faz a estação vindoura
os bichos que aconchegam
as gentes que desagregam
as marcas escusadas dos lugares perplexos
a fome o degelo o nuclear
Morreremos defraudados contra o abismo –
nossas bandeiras da rebelião
mastros de sal, trilhos inexplorados
planuras feridas
-, eternos garranos tresmalhados.

Lapis
September 21, 2022 § Leave a comment
Toda
– A PEDRA
tem uma ÁRVORE no coração
Basta que nasça a manhã
uma carícia de luz um assombro de chuva
uma sombra lambida pela curva da anca
para que germine um beijo um líquen
rebentos na plácida cabeça e alvoreça
– A PEDRA
quase pulso, quase sopro quase ESPANTO
Não fosse perigar recônditas vidas
adentraria os campos em poeira levitada
– A PEDRA
APEGO apelo poalha
amorosamente íntima das raízes
húmidas da terra

Labor
September 15, 2022 § Leave a comment
quando os barcos amanhecem
aporto no teu abrigo
as nuvens ondulam por sobre a urbe
a faina é um coração humedecido
peço-te pescador e aos peixes
um cardume de abraços para nascer o dia
acender os telhados de maresia
iluminar as marés
antes das velas novamente perfurarem a noite
ancorarem os barcos
deste nosso amor sitiado

infidelitas
August 19, 2022 § Leave a comment
Preocupa-me solenemente a poesia do poema
Se lhe toco a pele delicada e a magoo
e uma veia subitamente rebentada rasga o sentido do acaso
Embate nas coisas do mundo abstrato
em curto-circuito de caminhos
E um jorro de sangue sobre as casas e
um miado de pedras sobre as ruínas
bufa um maremoto de sal sobre as igrejas
sem pontuação de gente para rezar
uma vírgula muda que seja da homilia
deste poema absolutamente incrédulo
da poesia louca pelas paisagens emolduradas
descurar a vulnerável veia do coração

quaerere
August 16, 2022 § Leave a comment
demando urgentemente que me procures
uma paisagem pura para inaugurar um verso
um arco de uma fachada vergado pela cintura
até que me doa a sombra pelos flancos da rima
e o eco de um rio sulque o ventre da palavra
costure uma árvore súbita na planura do poema
na verde seiva da estrofe humedecida do poema
uma pedra por dentro do amor no sangue do poema
que a terra lavra

sacramentum
August 11, 2022 § Leave a comment
Amor Domi
August 9, 2022 § Leave a comment
Nosso amor é agora o lugar mais ameno da casa num dia solarengo de temperatura amorosa e natural Alguns pássaros entram e saem da ameixoeira Um gato no terreiro abre e fecha um olho a dormitar Sob a aragem tépida da tarde o quintal sustém o astro sobre o mundo como nós, esta salva madura de amoras sobre a mesa e nossas línguas que rodam a humidade rubra da fruta Nossas mãos entrelaçadas na carne e nos copos distendem-se e contraem-se famintas e líquidas pelo exterior e interior submerso do vidro e do olhar Quando descerraremos de luz este amor? Quando distenderemos os campos desta casa? Deixaremos os pássaros entrar, nidificar as árvores deste quarto debruçados de frutos contra a noite infinita? Quando colheremos do telhado a diurnalidade dos girassóis? Nutriremos a pele geminada das horas no sentido da vida?

illusio
August 6, 2022 § Leave a comment
É no pulmão da árvore que regresso nua à poesia
ou aos teus braços
ou ao teu peito descerrado
na pulsação da terra transpirada
que pouco importa o que desponta na paisagem
se é árvore se é pedra ou rio ou descampado
Já dei fruto
e o amor terno na copa
verte o corpo sobre o rosto da miragem

Atheos
July 19, 2022 § Leave a comment
Sinto saudade do tempo em que gotejava a poesia
cuidava o verso com genuína alma e desapego
Agora que os sentidos sobrepuseram-se à transparência
a alma arrasta-se até ao fundo da paisagem para olhar os pássaros
que já abandonaram as árvores em direção ao poema
algures desfeito no peito de uma nuvem que não choveu
atravessou muda a sede de um campo derramado
na voz indecifrável das palavras sangradas
contra uma planície ferida e sem retorno

pomo
April 3, 2021 § Leave a comment
o poema descerra-se em duas pálpebras
desfolha-se em duas mãos
dedilhado corpo adentro desabrocha em duas bocas
pela margem húmida dos lábios morde a carne à medida que sulca
o poema descerrado em duas línguas
o poema hirto, seda, ferro e rosa
alinhava-se em dois músculos o poema
sangra a margem embebida enquanto lavra
transpirado o poema talha a prosa
verte o sémen pela fenda da palavra
fructus
January 2, 2021 § Leave a comment
certos dias amadureces-me
entras por mim dentro
um rio pulmonar pela ferida exposta de uma árvore entreaberta
sobrevivo por conta desses dias
em que respiro a seiva que verte pela costura do músculo incendiado
tocas-me e liquidifico-me
dispo-me sob a tua luz com a água do teu hálito e reaprendo os astros
a exatidão do espaço e a matéria dos frutos suculentos
olhas-me como um certo vento despercebido que trespassa nu a ramagem de uma chuva inesperada
tocas-me desde as folhas sentimentais e desfias-me com um sol incandescente que sangra
o sol pousado no vértice da tua língua contra os relógios parados dentro do nascente
e a árvore que eu sou enquanto bebo e cresço enrubesce
corre um rio febril de horas adormecidas que amanhecem
é subitamente dia e eu compreendo tudo
que há eternidade em tudo isto mesmo que não pareça
do amor naturalmente ajoelhado nos dias tocar a boca costurada da terra
tu dentro desta veia e um jorro súbito de sangue na paisagem
de onde bebo da estação um fruto doce e rubro de muitos dias certos
e eternizo-me
feline
November 14, 2020 § Leave a comment
noites há em que gatos vagueiam paredes e a casa estremece
adormecer é deitar garras aflitas ao sono para calar os mios
asfixiar invasores da solidão
humidificar o medo
atingir a síncope do amor
ser brutalmente eletrocutada pela ferida e desfalecer
as mãos começarem súbitas a ronronar
presas aos gatos do coração
<3
October 11, 2020 § Leave a comment
^
October 5, 2020 § Leave a comment
esquecer é desinteressar-me
descer ao porão da memória para encaixotar velharias
ascender os degraus do abandono em direção à luz
tudo tem a sua idade para se organizar e recolher
os líquenes do tempo
a humidade própria que se devolve à terra
quando desponta uma casa duma semente
abrem-se as mãos e brotam paisagens desconhecidas
por onde ignoramos ainda os nomes concretos
por onde compreendemos já o enveredar das sombras
esquecer é sempre e logo uma questão de luminosidade
de arestas, de inclinação, de vertigem, de profundidade
num dia de sol infinito
em que atravesso o céu num corpo vivo
reacendo a essência
já não consigo nomear o que esqueci
sperare
August 14, 2020 § Leave a comment
esperar-te
é de certa forma alimentar-me
fazer da memória última água para partir
amar-te
algumas vezes solar
algumas vezes aquática
algumas vezes prateada entre os espelhos
pacifico-me, atravesso-me, abasteço-me
importa apenas saber regressar ao local do culto
com a fome reflectida no encantamento
das últimas humidades por onde andei
e as mãos preenchidas de luz para te contar
insomnia
June 24, 2020 § 2 Comments
porque custa-lhe adormecer
a noite escolhe ler o livro do amor
que começa no capítulo da memória e
termina no capítulo da insónia
salta sempre o capítulo das probabilidades para saber o fim
a noite extrapola os significados do dia adensando-os de metáforas
entristecendo a memória que vai fazer um chá
a noite enquanto espera lê os capítulos por escrever
subitamente desentendendo tudo do amor
e o chá da memória arrefecer
então o amor sente um frio terrível e incompreensível
levanta-se e vai ao armário buscar um cobertor
para aquecer a história e adormecer
domes-ti-cidades
June 4, 2020 § Leave a comment
nos dias de mendicidade
limito-me a fazer barrelas do passado
a limpar os vidros do futuro
a requentar o presente com o lume dos outros
dedico-me a domar-me pela tua cidade
com os bichos ao peito
fazer-lhes festas com o pé
lamber-lhes o pelo com o sexo
dar-lhes de mamar a minha língua
estou de passagem
pelas pequenas grandes humidades alheias
prosseguir é masturbar-me com o tempo na aspiração do espaço varrido da casa
como tal, nos dias miseráveis
limpo as cinzas dos cigarros que não fumo
faço nuvens para regar os vasos
mendigo-me
e dou-me esmolas
venho-me no pó e nas sopas da má catadura
viridi
April 30, 2020 § Leave a comment
domum
April 7, 2020 § Leave a comment
agora que os dias fecharam
o mundo é uma grande noite clara
e a distância
chega com a luz com que reconstruo a casa
se não fosse esse gesto
simples
da natureza entrar com o sol desde as fundações
para restaurar do medo as profusas fachadas inúteis
e eu
inesperadamente entender a intimidade de tudo
para lá deste hábito natural de possuir a construção
se não fossem os pássaros
nidificarem súbitos no beiral da fragilidade
a respiração delicada de uma relíquia antiga
se não fosse preciso fechar-me para decifrar o invisível
diria ainda do mundo um habitáculo de irrecuperáveis viagens
do mar
uma fotografia com maresia
desde o filtro das marés ao arco-íris sem retorno
diria verdadeiras inutilidades puras
de telhados sem alicerces sobre argamassa movediça
não fosses tu vida visitares-me
rapidamente com a morte
calares-me
fechares-me nos dias
e eu
abrir-me
o pai
March 20, 2020 § Leave a comment
no céu continua os planos de poupança
poupar discussões, poupar sono, poupar paciência
tem todas as mesas, todas as bancas, todas a petisqueiras no céu
o pai tem todo o vinho e todo o fumo e toda a alegria que pode ter
o pai não gasta um tostão no céu porque é tudo de graça
o pai tem uma coleção de pássaros que o seguem para todo o lado
galinhas, patos, pombas e um melro velho que um dia fugiu
o pai tem uma coleção de animais selvagens, macacos e leões
o pai tem África inteira sobre as nuvens
o pai viaja sem pagar entre os países
não tem de comprar bilhete
o pai, do céu, aciona os despertadores dos relógios na Terra
põe o rádio alto pela manhã, bate palmas para acordar e levantar toda a gente
o pai quer trabalho para toda gente e toda a gente a trabalhar
resmunga
resmunga
depois junta-se aos anjos para uma cartada e
ganha sempre
depois
senta-se numa interminável mesa a petiscar sandes de presunto, bolinhos de bacalhau
aos pés, uma grande grade de cerveja
e os olhos brilhantes, brilhantes
um sorriso eterno e descansado nos lábios
uma vídeo cassete de vida selvagem
pisca o olho e dá uma gargalhada
está feliz
está 100%
ponto
March 7, 2020 § Leave a comment
pega
estou cansada de andar por dentro deste livro
sem as tuas mãos dadas às palavras
tudo são caminhos desconhecidos sem o teu olhar
tudo são lugares inóspitos capítulos sem rumo
mas se me deres o teu corpo ao virar da página
talvez consiga ler nas entrelinhas
a história de lugares habitados
por onde me possuís entre os parágrafos
arborizados da viagem
segura
carne vale
February 25, 2020 § Leave a comment
despes-me e reconheço-te
visto-me desde a tua pele interior
e agora que me tomas os pulsos
a veste desde o avesso e puxas
as veias com que costuro o meu corpo
fantasias-me?
agora que rompes estes fechos
abres-me a carne desde o começo
vertes teu traje sobre o meu vale
pergunto desmascarada à perfeição
amor
quando tocamos de corpo?
o amor
February 15, 2020 § Leave a comment
amor
do amor
todos os dias sou do amor
do amor a chama a perseguir-me
dele sempre
ainda que de mim queira morrer-me
do medo que vivo as estações resolvidas
os dias regulados desconjuntados dos meus
que careço na alma a perfeição momentânea do amor na irritação dos dias cinzelados para as coisas
as coisas penhoradas nos dias inexistentes
as invenções felizes nos calendários tristes
sou do amor quando penso o nome
o amor que tange os meus dias irresolutos
contraditórios e acidentais
o amor nos dias incompletos e imprevistos
o amor verdadeiro que me encontra
reconheço-o e desfruta-me
torcionário suave na morte que me aplica
terno da minha efémera serventia
o amor
odds
February 6, 2020 § Leave a comment
talvez os pássaros
aplique aos pássaros esta amorfia
que careço a seda da ave que falho
o deslizamento migratório que escapa
sou a bruma
sou a bruma que encobre
mas eles o sol negro que alucinam
que o meu fantasma no lago tem olhos
passa os dias a contemplar a treva
no limite, resta a superfície a espelhar-me a face
a paisagem aquática
essa que é o prenúncio geminado
talvez o fazedor saiba o metal das aves
já que sabe de cor pedras e valas
lê os lodos e as sedas e as miragens
nada disso o intimida
talvez saiba de mim qualquer vertigem
compreenda esta bruma irrespirável
a faca contínua na atmosfera
o metal que transpiro
falo do resvalar laminado
da luz lacerada na carne da fronte
porque depois só o rosto
ainda mais indecifrável, submerso
a ferida aberta sem língua
os pássaros debicam fruta na árvore
enquanto planam o tempo da descida
escorrem o doce dos bicos antes do voo
careço desse açúcar
logram o meu olhar desfocado de crosta
adocicado de sangue
orbes sem pálpebras na desfocagem do bando
no afogamento do suco
se atiro os braços agora esta dor contorcida
desce a sombra condoída sobre o espelho
e a minha boca húmida ávida cresce um poço
abandono a cabeça
vejam só as aves como voam
contorcem-se naquela velocidade negra tão suave, melodiosa
dançam como a paz e o silêncio da morte
um maná de penas de ossos e de força
o bando inteiro o céu
vejam só
como dançam, seduzem
tu, açulador de sentidos sente-me a garganta os pássaros
que vivencias? tomas da minha boca rasgada
como voam ondulam negros as lanças
como lhes espero as asas
alguns, ainda pelo canto do olho debicam bagos na árvore serenos
antes da chuva dentro das minhas mãos
antes da acidez do medo adormecer
não tarda nada nenhum na árvore
todos dentro de mim
não tarda nada outra massa
outra massa que ondula
e este vestígio de sangue no lábio
alquimia
January 23, 2020 § Leave a comment
ainda não ergui as paredes da nossa cidade
ou galguei as muralhas
mas quero
um mapa quente apertado na mão e um punhado de vento suado
e tu pelas vigias
e eu pela mão das paredes carregada de versos
transpirada de bichos
escorrego-te os olhos
circundo-te
sentes o meu verde o meu vento?
é a minha face arrastada de pele pelas tuas poeiras
se abrires a boca, muito – um oásis
-, respiras-me e perfuro o teu barro
todas as pedras que trago dentro
chegarão para construir torres altíssimas para os nossos pássaros que ainda não chegaram
mas vejo-os daqui – como planam, esperam
atravessam devagar o céu até morrerem, pacientes
a escuridão dentro dos olhos
arrastados de planícies pelo azul que não existe
a eternidade desce com o Sol – alquimista -,
e tenho os peixes nas mãos para nadar o ouro
o fundo na seiva das raízes
se descer com eles a correnteza
as veias até à profundidade
as minhas escamas pelas tuas folhas
até aos alicerces do que ainda não começou
agarras-me forte pelos cabelos para que não fuja?
algemas-me os braços ao mesmo sonho antes que adormeça?
banhas-me de luz antes da noite?
luxação
January 13, 2020 § Leave a comment
Parto do amor mas regresso sempre
demitida o sopro o suor a mágoa
as pernas nuas pelo vestido
como se na corrida me chovesse
e o vento nos joelhos me entornasse
despida fosse a cor da minha roupa
a roupa fosse a dor de estar vestida
e o sangue pela carne transbordasse
a velocidade louca de ser água
na fonte do ardor endoidecida
saudações natalícias
December 24, 2019 § Leave a comment
natal marcela
natal lídia
seja lá o que isso for
desejo-vos daqui da cozinha
enquanto esticas a perna
e tu distendes o braço
deixa-lo tombar sobre as águas
eu golpeio um dedo da cor do garrote do velho inventado
uma faca
um lago que escorre da carne para o sifão
da dor para o esquecimento
dos homens para o mundo
do meu dedo acordado para o natal ferido
um lago que mirra como já morremos todos
que eu não tenho oferendas
do teu pé tão descalço marcela
do teu peito tão nu e culposo lídia
do natal tão vazio de naturalidade
rasguei o pano e agora esta cavidade enorme por onde entra e sai o mundo
entras tu à procura do teu natal esta é a tua casa entra
que chegue pela noite dentro coberto de braços
e tu a espreitares esse outro
aproximado da paisagem dos sonhos coberto de acenos
misturo-os e é o natal exato perfeito que não existe
é o mundo que entra para nataliciamente foder-nos
enquanto esticas a perna e tu distendes o braço
eu descolo o peito
aqui o bacalhau é mediano como os homens
crescido como os sonhos
egoísta como a fome
e as azeitonas mistas todo o ano no vértice do meu dedo
rodam
que não cessa o natal ferido uma espinha sem dorso
um hematoma sem fundo
que eu não tenho prendas do teu pé tão descalço
do teu peito tão pisado e nu sob a frontalidade
desse nome tão vazio que escorre para o sifão sangrento
que entope o mundo da mesma janela
gemei que já vou depois disto tudo desculpabilizar-vos tratar-me
enxaguar-me desta miscelânea de esforços
natal natal marcela paciência
passar-te a mão assim tão levemente
subir-te o corpo como a uma estrela
enquanto lá fora a noite aumentada deste furto
um bréu que esconde o sangue
é o natal lídia a pentear-te o cabelo como um polvo
depois do natal limpar a barba ao linho
tchau até pró ano despedir-me, despedir-se
o mundo atrás do pano
a culpa o garrote no ralo do sifão da pressa
enquanto esticas a perna e tu distendes o braço
natal natal palmas
sobe e cai já se foi
até pró ano
agora é a louça e o menino na banca da imaginação retalhado
podes despir-te Marcela que não te vê
já enxaguei a banca e estou quase
quase seca quase morta quase aí para lembrar esquecer de novo
este golpe mediano como tudo
a cor do sangue
o mundo a sair já exangue
natal marcela podes deitar-te acabou
deitemo-nos sob o luar da janela
as duas as três eu inteira do sifão para fora
lídia recolhe as tuas mãos geladas
mete-as depressa à boca aquece-as com o teu avesso
que a tua boa vontade é egoísmo e baba e óleo
e o meu sangue quente já mirrou no pano
e o sonho é um barco afugentado longínquo
um trenó puxado por peixes cravado de trilhos
natal depressa
natal perdemo-nos
que o mundo mirra por fora do teu nome
o amanhã some-se sob o casco da rena
o meu dedo na tua boca marcela lambe
o pano sobre o teu peito Lídia morde
o teu nome um rio de sangue do meu dedo
frio como o menino que escorre
amanhã lavo os tachos ou nunca
que o mundo é tão sujo lavo antes a estrela
enquanto esticas a perna e tu distendes o braço
que se lixe a louça e estes maus cozinhados
venham antes jericos vacas e ovelhas marchar sobre tudo isto
animais extintos ou desconhecidos mais natalícios por isso
uma jangada de bichos do meu dedo para o sifão para salvar o menino
o mundo num rasgo, num golpe natalício por nascer ainda
lavo antes os dentes e depois se ainda natal e apetecer-me
ou melhor tudo menos natal e todos salvos até o próprio deus,
podemos sempre juntas foder-nos para aquecer esta quadra
até o dedo exangue festejar o reinício
que o sonho voltará sempre amanhã lídia para o jantar para o lambermos
já disse
porque nada se concretiza desta vontade golpeada
chega-te a esta fogueira já a estas achas de raiva
vem acender o corpo arder a casa inteira e estendê-la ao mundo
o nosso lume um oceano natalício do sifão para fora
podes despir-te marcela que não te vê
natal natal e o menino na crista da onda palmas
na prancha do dedo
no fluxo do sangue
até esquecermos tudo isto
esta necessidade plástica de nomear nascimentos
desmontemos a árvore para uma verdadeira
a casa para um lar natural
ainda que nós sempre as mesmas e de faca em riste
a lembrar o escusado natal
com este dedo ferido
noctis
December 13, 2019 § 4 Comments
se me deito, rompo as vértebras e lanço-te os braços do peito
e tu olhas-me indolente e doce
e caças-me os pulsos e suspendes-me na noite
das tuas cordas invisíveis
e eu fico assim dependurada dessa ideia um tempo infinito
de ser a tua pupa estelar, oscilante no espaço
com a minha carne iluminada por dentro do teu silêncio
e se vibro e gemo pelos meandros dessa tua calma
tu torces-me vagarosamente na obstinação do vazio
até que dum repuxo expludo e verto-me de seiva luminosa
um coágulo de leite que do ventre deixa-se orbitar
parir um rio pela via láctea das tuas mãos transparentes
anéis pela cintura das horas húmidas
e dissolvo-me sobre a tua fronte inexplorada
sabes bem
que trago comigo nebulosas virgens amamentadas de medos e que
com elas sobrevoo a tua permissão e colonizo-a
e à tua carne convulsa de mansidão inventada
porque o meu corpo é um astro no sustentáculo do amor
e tu sabes
que somos vestes instintivas no interregno das poeiras
assim, antes da obscuridade, permito-me horas a imaginar
que velocíssima detono galáxias à tua frente e que me habitas
horas suspensas na fruta que amadureço à tua porta
aflijo-me muitas vezes com isto dos teus mistérios
com as marés das minhas profundidades tontas
mas depois tu revisitas-me tímido e tranquilizo-me
de saber que quando me deito
já te encontras à minha espera dentro da noite
inépcia
December 8, 2019 § Leave a comment
é domingo
sou um oceano emparedado a nado do silêncio
água contra pedra ida contra regresso
e esta barbatana encravada no ombro
igualzinha à tua asa presa
é um peixe roxo por dentro do osso
atiro o coágulo numa braçada de água contra a ave estacionada
mas é domingo e a velocidade é uma espinha
o mar é náufrago das marés
ida contra pedra regresso contra água
evapora-se
na manhã engaiolada em que o amor é uma âncora
os cardumes dormem e as aves não desovam
aliena
November 6, 2019 § Leave a comment
não sou do vento não sou da chuva
não sou sequer do tempo de mim mesma
nem das flores eu sou nem sou da música
nem das árvores nem dos olhos nem dos gestos
não sou da existência torpe, sôfrega e vencida
aquela que se entende próxima, segura e certa
não sou do pensamento compreendida
não sou mais que uma ilha longe terra deserta
se julgam que me podem então não sou
se julgam que me sabem então não dou
sou mais longe que o longe onde não estou
se entendem que me entendem então eu minto
se entendem que me mostro então pareço
sou mais longe que o espaço que desconheço
cadunt
October 27, 2019 § Leave a comment
a tua cor chega do interior da pele como o outono
a terra abre a sua boca húmida de sangue, deita-se para trás
solta a sua língua silenciosa com que escava a terra e ascende às árvores
assim mais ou menos como eu
quando me distenso lânguida sob o teu corpo
cavas um vale profundo por mim adentro que ergo e rejuvenesço
como se a terra levitasse
chegasses súbito de dentro da estação primeira
comigo já assim madura, colhida do tempo
pousada sobre a palma infantil da tua mão
uma semente oferecida e evaporada
demasiado simples esta idade das coisas
como a natureza se aproxima e se retrai
recobra e se renova a si mesma
como chegas e inicio-me
penso
se a terra recomeça também tu me regressas à primavera
com árvores açucaradas enterradas no peito
quando te aproximas folhagem, fruto, semente
para remexeres-me desde as raízes
a terra abre-se e tu colhes-me
do ramo mais alto com o vento estacionado, inclinas-te
vagarosamente
num recorte de azul ensolarado para povoares de seiva o meu sexo
desaguas, chegado de todos os lados como a transpiração
para me tomares como um fruto inseguro obediente à luz
uma árvore ruborizada
uma árvore de sangue
uma árvore aquática
uma boca atónita
contra um solo de carne entorpecida
delicadamente brotada para o espaço firme da tua plantação
a natureza move-se, tu tocas-me, eu acordo
pela altura certa de já ter crescido um extenso pomar
de todas as sementes inesperadas que experimentamos
serem já demasiadas as árvores para visitar
os frutos demasiado altos para colher
estarei perdida meu amor nesta imensidão
ou reencontrada nesta terra tão fértil para compreender
chega-te por isso e ocupa-me mesmo assim, ensanguentada
que este nosso outono é de terra, raro e perene
é tão macio e tão doce, como se chovesse sol de dentro dos frutos para a nossa boca
e engolíssemos juntos o açúcar gerado da felicidade
de nossas línguas emaranhadas
fechássemos os olhos sob a luz e adormecêssemos
brotados da ampla planície que retornou despida
ao colo da estação extenuada que deu fruto
sabes
acho que somos deste campo aberto
duas ocultas primaveras nuas
lignum
October 9, 2019 § 3 Comments
escreve uma árvore
escreve-me uma árvore e desenha-me um poema
escreve-me uma árvore, folhas, letras manuscritos de palavras
uma sublimação esverdeada, livre e espontânea
escreve-me umas asas
uma montanha que voa
uma montanha elevada e uma árvore tamanha
frondosa alta e recortada
uma copa farta à deriva num vendaval de letras
um pincel à toa de palavras
deslavado em calhetas
vá
desenha-me essa árvore desenha-me um poema
uma pauta musical de chuva
aves abrigadas no arvoredo
ninhos
versos
telhados espelhados na brisa
apanha-os e descansa-os
coloca-os na segurança do refúgio assinalado
no teu mapa escorrido
nessa árvore
no meu universo plantado na ramagem
escreve escreve
escreve-me um livro
rematado
complexo
escreve-me um trilho
uma estrada
sentida e gigante que entenda
verso a verso
folha a folha
água a água
um aguaceiro de verde e sombra matizado
escreve-me uma árvore
descreve-a alteada
cavada em mim
submersa na minha tempestade de abetos e silêncio
vá
desenha-me
isso
devagar
devagar desenha-me
desenha-me
escreve-me assim verde e alta e molhada
o caminho
o firmamento pintalgado
estrelas e sol
vazio e luar
a árvore nua
a árvore recortada e acordada na noite
delineada e vigilante
e a tua mão em desatino na escuridão
escreve-me uma floresta de livros e de sossego
uma fuga repentina das prateleiras e dos medos
das frases encasteladas
a árvore
tempestade de folhas e neblina
tu
um tapete de terra molhada e mansidão e nervos
cores e purpurina
o mapa das estradas
estreitos e nadas
escreve-me essa árvore
escreve-a e desenha-me um poema
a árvore que eu quero
que adivinho pura
seiva
a árvore pungente e inadiável
a árvore altíssima
verde arreigada no teu nome
escreve-me um poema
um ninho
colmatado
perfeito arborizado
a tua ausência em desalinho entrelaçada nas raízes
horis
October 4, 2019 § Leave a comment
as minhas horas
são feitas de espaço e de paisagem
não há medida nas minhas horas
não há aragem
os ponteiros são passos
as anotações esquissos
as minhas horas são letras
são estrupícios
não há espaço nas minhas horas
não há medida
nas minhas horas não há chegada não há partida
sei de cor o tempo do meu espaço
sei de cor a hora
sei de cor o tempo de cada ausência
se chegar demora
minhas horas sequer são minhas
sequer são tuas
as minhas horas são apenas letras
são apenas vento
não há mistério nas minhas horas
não há loucura
as minhas horas sequer existem
sequer as tento
as minhas horas são almas livres
são argumento
não há urgência nas minhas horas
só conjuntura
observatorio
September 12, 2019 § Leave a comment
plantar barcos de flores em agras de viagem
apenas para singrar nos olhos as marés
içar corolas à boca solar do desconhecido
depois talvez numa nuvem prenhe
na lambedura espumosa de um mastro
entenda deus um caule afiado de raiz temerosa
e apenas de sentir-se assim desconsiderado
chova enfartado qualquer estrela sobre o convés
retempere o campo do peito semeando-o de luz
e o vento de feição restaure de verde a maresia
a fé nas mãos sinistradas do estaleiro do amor
um
August 30, 2019 § Leave a comment
vou ali
colher uma flor
olhar um pássaro
observar um barco
apanhar uma pedra
escutar um rio
tudo isto eu farei indo simplesmente ali
como quem fica a imaginar apenas que vai
e entretanto passa um bando
que não vi
sobre um rio que não escutei
estava no meio do jardim que não vi
a procurar entre as pedras que não sei
bem
como não fui
regressei sem a água e sem a flor
sem o pássaro que levou a pedra que não apanhei
corri mas estava sozinha e não me mexi
que agora existem todos sem mim
que já não vou
desisti
floração
August 22, 2019 § Leave a comment
enquando te falo deste jardim e das suas espécies
divagas sobre as flores antigas dos campos vedados protegidos dos vendavais
nada posso contra a antiguidade ou contra essas raízes que se perpetuam frágeis
e nada tenho contra os relógios estagnados das paredes oblíquas
seguro o meu vento com o peito aberto arrasto das pedras evaporadas
enquanto agarro estas nuvens desde as ruínas com que regarei a suavidade
das líquidas florações
e enquanto tudo se alaga por dentro e por fora dos gestos
em círculos de miragens doces a pique do céu
os botões tenros que guardo aqui sob a tua luz descendente
que ainda não sabem o nome verdadeiro das florescências
esbatem-se no campo aberto das bocas descerradas e caramelizam-se solares
enquanto chove
devagar
a par dos rios vagarosos que se deixam levar por dentro dos olhos
ao mar da rebentação
porém
tenho sérias dúvidas como sérios contentamentos
sobre estas e aquelas irreflectidas plantações
de que são feitas
o que retiram da pele remexida desta terra
de que forma a tua sombra se curva sobre as corolas
encosta o peito às vértebras da felicidade
docemente ou condoído
frívolo ou amedrontado
de que jeito se encaracolam os corações no frio da solidão
as folhas sob o sol terno do teu olhar desgarrado
a musica do teu riso à sombra da hesitação
até onde se distendem as raízes desde os abetos dos teus dedos
a contorcer a dor por dentro do inatingível
qual o verdadeiro sabor que goteja da tua sede lenta sobre esta aridez partilhada
quando te falo de amor humedeço-me por dentro
enquanto falas do tempo com sementes dispersas e aquáticas no olhar que
enrolo na boca desde o teu sexo
para desbravar a pele entre as deslocações nestas minhas nossas
furtivas semeaduras de irrepetíveis estações
e sei tudo isto a remo dos ponteiros dos teus dedos
que tudo leva o seu rumo e que nada nos pertence mas que tudo de ti me completa
enquanto sais para regar os campos antigos nas horas concebidas
comigo deste lado de mão dada aos trémulos rebentos da primavera
se me perguntam se demoras digo-lhes que não, que sim, talvez que sim
que sim mas que falta quase sempre uma estação por dentro da saudade
que é uma sede indecisa numa brisa que se dilata por dentro do verão
e se sacia lenta da espera condescendente e húmida
que ao virar da esquina o futuro vem de rio cansado ao colo
a arrastar os pés pela margem mais embebida do mar
de olhos fixos no fim
digo-lhes isto para que chorem
ou me chorem
ou talvez ainda para escutar-me nervosamente
que se acertarem o teu nome por dentro da água ensanguentada do coração
terão um dia um lugar assinalado no mapa da floração
ou não
mea
July 18, 2019 § 3 Comments
espero-te sempre
meu amor
como um verão inseguro
a par da estação
a tocar-me tão ao de leve
tu
meu amor
e o presente
sempre um tempo que não chegou
assim anoiteço
assim me embalo nesta tremura
no desfasamento destas nossas proximidades
meu amor
ou então
no gesto de uma pedra ao mar por atirar
quero dizer com isto que me faltas
que mergulho sôfrega meu amor
de dentro do gesto contra o vazio
nesta granítica solidão sem balanço
enquanto o sol brilha o teu rosto inatingível
e pareces-me verdadeiramente verão
e o mar um quase inaudível rumor
da tua voz submersa
assim sou eu
e estou
a esperar o teu gesto preso à contemplação tangente
meu amor
meu amor
cibus
July 5, 2019 § 2 Comments
como se não fosse por ti
de caminhos crescerem as árvores e as casas e o universo respirável
e não chegasses para explodir o mundo depois dos beijos
de tudo tão enlevado e triste e supremo e verde
com cães nas ruas a ladrar às fadas
que nos fazes depois da luz, da carne, da semente, da ave no cabelo
à bomba que nos pões no bolso?
treme-me a mão a latejar-me o peito
para onde te arrumas depois de ofegares, explodirmos
e aos destroços, o pente, os olhos nas feridas?
já não eram eu sei, nunca fomos, seremos, depois de despidos
os relógios impossíveis tão só a tua liberdade licenciosa
musgo e sarna na pedra a martelar as línguas
até desfazer-se a pele, azedarmos o leite na perna
o dialeto menstrual avançar exércitos silenciosos
trazes-nos já estupradas com valas no peito?
o teu perfume na baba ainda? a lamber-nos o joelho,
as mamas em cataratas de fogo no júbilo do teu sémen?
estou à mesa e uma toalha de sangue,
cotovelos e um garfo no olho impaciente
para onde olhas? que enxergas debochado?
as nossas bocas quentes, quase? o mundo afogado
a mastigar-nos ronceiro, açucarado nesta festa quente?
somos húmidas no teu celário, sei sinto
pulsar a costura das planícies contínuas,
lagos parados e tu a mexer-nos as cavernas
as folhas escuras no útero
ainda assim dás-nos de comer sob os incêndios?
nem que fome e espinhas sempre? e a sede inflamável?
domes-ti-cidades
June 7, 2019 § Leave a comment
nos dias de mendicidade
limito-me a fazer barrelas do passado
a limpar os vidros do futuro
a requentar o presente com o lume dos outros
dedico-me a domar-me pela tua cidade
com os bichos ao peito
fazer-lhes festas com o pé
lamber-lhes o pelo com o sexo
dar-lhes de mamar a minha língua
estou de passagem
pelas pequenas grandes humidades alheias
prosseguir é masturbar-me com o tempo na aspiração do espaço varrido da casa
como tal, nos dias miseráveis
limpo as cinzas dos cigarros que não fumo
faço nuvens para regar os vasos
mendigo-me
e dou-me esmolas
venho-me no pó e nas sopas da má catadura
fusus
May 10, 2019 § Leave a comment
o teu amor
é de incontestável silêncio
e apneia de luz
assim, quando te distancias eu escureço
seguro o teu rosto como uma candeia
com que atravesso a noite bamboleando o teu nome
à medida que suturo os gestos
os teus ombros
as tuas pernas
o teu sexo nos passos
enquanto comprimo a tua cabeça entre as minhas coxas
para alumiar o amor
para ordenhar o caminho
rosas de maio
May 1, 2019 § 2 Comments
as rosas de maio
florescem nas torres mais altas
dos homens mais altos, das sementes mais fundas
por isso,
os homens galopavam rápido,
montavam bestas na perseguição da terra,
desbravavam de cascos a trajetória,
as veias na pulsação da humanidade
e chegavam com bestas nos braços,
os ossos quebrados de cestos de flores
eram tais homens que edificavam o mundo,
martelavam ferozes o futuro na leveza das pétalas,
os caules que sustentavam os saltos,
impulsionavam as subidas
eram eles os plantadores dos jardins mais altos e inalcançáveis
exatamente os mesmos plantadores de hoje
e as torres, essas, fixos planaltos,
balançavam os corações das corolas,
crianças plantadas num vento maternal, embaladas,
o peito azul leitoso na liberdade
porque partiam contínuos, irrefletidos, instintivos e puros
partiam permanentemente ainda que não voltassem
velocíssimos, trabalhavam excelsos essa lonjura
a proximidade da alma à essência da terra
partiam vagos mas seguros, montados no coração das vagas
e galgavam as próprias torres com a carne ferida
aberta de lava, até ao último perfume inocente,
a última gota de sede
e tudo era sanguinário, preciso e belo
a formosura brotada do sangue e da luta
e tudo era corações de fogo a proteger
e tudo por um futuro isento e assegurado
e tudo eram eles
e eles dentro de tudo eram tudo
as rosas de maio nas torres mais altas dos homens mais homens
era assim
e as crianças cresciam das bermas e aproximavam-se
não tinham medo das torres nem dos homens de lume
escalavam a pedra e a carne como botões verdes,
e equilibravam-se felizes,
bailarinas sobre as vigias levitadas,
o corpo imaculado entre as roseiras,
o peito ao longo dos parapeitos de luz
assim penso que era
como penso agora as mesmas as torres, ainda,
só que mais baixas dos homens mindinhos,
das sementes mais deslavadas e desvalidas
os homens
que ainda galgam canteiros espelhados de serranias
ainda os mesmos,
dos mesmos fantasmas,
ainda deles as mesmas torres,
delas o corpo da poeira e da folia
e as bestas saudosas, as mesmas ainda,
velocíssimas, recuadas, retraídas,
a arriscar o retorno por atalhos de melaço
um dia vão encontrar-se lá trás com este futuro
e as rosas ainda delas, fotográficas e sublimes
a ajardinar o passado gigante nos retratos
e as crianças, bailarinas ainda,
mas tristes entre as valas,
as cortinas das giestas,
intermitentes na prata do cascalho
têm os olhos postos nos cascos das bestas
e não os tiram, que elas não mexem
se pudesse regá-las a elas e às rosas sem ser de sal,
pela única, derradeira esperança do derradeiro campanário
a gota ainda latejante do inerte, ainda o mesmo plantador
talvez ainda uma semente que restasse,
uma roseira por brotar na pedra de qualquer torre
remus II
April 17, 2019 § Leave a comment
porque amamos demasiado o impossível
colocámo-nos céleres na boca do amor,
nus e do avesso para fora da carne
só para beijar na língua o precipício
trilhar o lábio no dente da escuridão
rapidamente desentender essa dor que aguçamos,
descemos mélicos pela escoriação
no fio frágil do sangue
amamos
e porque somos ininterruptos
essa dor masoquista insiste
persiste na aceleração das aves
no prazer delineado pela semente açucarada,
a avidez vertiginosa no bico da quimera
aves pré-históricas, flores carnívoras, feras desenfreadas
somos nós, rápidos
amamos
e porque amamos demasiado a loucura,
de sofrer trajados essa cegueira
guia para as funduras do peito
pelos atalhos das cidades encantadas,
brotamos pássaros azuis dos gestos ávidos
e cardumes fluorescentes da tremura do pânico,
e povoamos o céu com toda a felicidade desse medo
amamos
e assim na fome, pela foz diluída do esquecimento
o coração leitoso atravessa o oceano dentro da espera
sozinho na barca latejante do início
mais tenro que a rendição transparente do corpo
mais doce que a humidade gotejante do amor
mais crente que o amor imagina
que o amor leitoso pelas ondas da invisibilidade
viaja o impossível
ao encontro do amor
no desespero do amor
e imagina tudo possível
enquanto rema
autem II
March 27, 2019 § Leave a comment
a felicidade tem uma luminescência tua que dança comigo
campos rodados de flores e árvores nas minhas carnes noturnas
lagos que perfuro embriagada das tuas mãos
todas as madrugadas cuido
todas as madrugadas são solares e deito-me na tua calma,
lavro o teu tempo no meu campo orbicular de flores
são as estações pelo júbilo transpirado e circular,
circunscritas,
de ti circunspecto como o sonho a infância e a tarde
e todos os lobos interiores sitiados neste lume ululam,
celebram para lá das fronteiras clareiras novas
e se me assustas
construo depressa uma casa e largo-lhe dentro um sol,
solto a pelagem da matilha e estremeço por dentro
porque sou quase gente quando mordo ou quando agonizo,
injurio-me e entristeço-me
sou simples, é isso
simples como tu
quando demoras o tempo exato de eu engolir o que sinto
o mesmo que levo a apaziguar qualquer padecimento
o amor
o amor trespassado de trilhos e feras tresmalhadas
caçamos ou fugimos?
todas as madrugadas festejo-te e danço-me
enquanto te interrogo sobre como vão os campos
e respondes-me sempre com o teu silêncio
que vão bem e que estão preenchidos de códigos e flores
e grito reconstruída essa felicidade num contorno de lágrima
o projétil perfurado no meu peito inaugurado de vítima
porque existires às vezes basta-me
e do telhado cresço uma janela espontânea que não vês
de onde me vejo escancarada numa ave que chega daí,
às vezes um inseto desgovernado na luz que me tange,
morre logo depois como a lonjura
um movimento que morre como eu morro
são as tuas mãos que me fecham me perdoam e salvam,
tremem o contentamento e ressuscitam-no do medo
enquanto descerro os lábios para beijar-te
acho que me conheces bem e ao meu paladar
somos velocíssimos nesta dança obscena
e a felicidade esta fera amestrada e amedrontada,
e as nossas línguas lavradas pelo mesmo lanho ferido
e evaporamos campos e lagos néones, etéreos
e voláteis que quase perecemos neles
nus inauguramos a espécie
e nada mais importa que esta embriaguez sobressaltada
desfalecer para reconstruir de novo
opium
March 7, 2019 § Leave a comment
todas as flores se tornam incompreensíveis sem a tua presença
como barcos subitamente avistados repentinamente submersos
naufragam vazias no betão
quero dizer que é o amor
e que simultaneamente me angustio com a fragilidade das distâncias
e porque existem flores
tenho saudades e outras coisas indecifráveis como pedras, folhas
caules e raízes à deriva na solidão
papoilas
cujas pétalas são a tua língua que se repete
de encontro ao céu da minha boca
e a humidade uma chuva lenta num lugar de insanidade
assim tento entender a ordem do mundo
alternando a ordem das flores num campo aberto incendiado
qual é a primeira papoila? sendo tu sangue na planície inóspita?
e espero
e espero
e espero
enquanto o amor dá voltas às raízes escalando o caule da vida
depois desisto
de serem mudas as coisas dentro delas mesmas e das repostas
e os barcos terem já partido ou nunca sequer terem chegado
para que lado se move a flor na estanqueidade do sonho?
para que lado verte a seiva do nosso amor?
para que lado caminham as raízes do coração?
sendo tu primitivo caule, fonte da inaudível saudade
e tu papoila
amor à procura de terra nesta miragem de chão
iter I
February 9, 2019 § 1 Comment
eis a beleza abrupta do início
pequeno barco na rota dos pés
dá-me a tua mão verde para o aplauso
para navegar o começo
que é do princípio que me dispo
que é da partida que te colho
qualquer palavra muda na faina
eis que partimos, musicais pedras,
espécies intraduzíveis, corais
ao fundo dos peixes das flores
eis muitas ilhas à esquina do amor
escarpado fim
dá-me a tua mão azul magnífica
e não te apresses solar, náufrago
na jangada de luz
na violência feliz de aportar
guardo comigo a obstinação solene de uma árvore
o mastro atravessado no peito da planície
e a quilha ao leme da respirável terra
assim, espero-te
rasgada pela costura do mar,
boca desfraldada, o teu dedo a prumo da paisagem
martelo húmido à vela no cabelo
eis que somos deuses e inauguramos juntos esta miragem
eis o navio à proa do sortilégio das marés
deixa-te inábil, sobreposto
na barcola da pele em que me largo
e que te prenda apenas o vento vertical
a veia na inquietação do sangue
guio-me pelo fluxo dos teus lábios
pelo pulso dos teus olhos
e emerjo à tona instintiva das vagas com a memória
essa fome espumada no vício da tua língua
assim, cobre-me de cuspo ou espuma ou febre
e estende-me as cinzas em inflamáveis gestos
um braço, um ramo eternamente jovem até à ilha do fim
onde firme os dentes no nervo da terra descarnada
que é violenta a planície do amor
e embriagado o arrasto no respiradouro da paisagem
e eu, sou pulmonar no convés da fraga
se respirares devagarinho bem ao de leve
decifrarei no hálito o caminho,
entrarei mar adentro pela fenda nua,
a ferida aberta da largada
hortus
January 14, 2023 § Leave a comment
occidens
November 4, 2022 § Leave a comment
Os fantasmas encantam-me
como reflorescem a manta morta
dos dias que sobejam dos frutos
da memória humedecida dos sonhos
ao mesmo tempo que o esqueleto do fim
dança a vida pela eternidade do tempo
e eu desfaleço a estação num pé entalhado
de folhas no ciclo da dança transparente
e tropeço delirante nas raízes do amor
contra o peito firme dos poentes
amorosamente rubros

ignis
August 2, 2022 § Leave a comment
por ti amor abeirar-me-ei à porta do vendaval
onde se atreve a semente contra a aridez do peito
a vida incendiada contra o poente
antes da planície esventrada na paisagem
esvoaçar a árvore, enraizar o pássaro
perder-te do meu pranto num braço de rio

Sine qua non
July 1, 2022 § Leave a comment

Certos poemas dão flor antes da plantação
quando o amor pela crosta da semente fecunda ainda a humidade da terra
Quanto ao fruto nada é seguro contra o bicho do tempo ou a cochonilha do espaço
Pouco se sabe se atingirá a maturidade limpa
É com a flor que me contento contra as invisíveis pragas do amor
Começo por cheirar o céu desde a raiz da cor
enquanto rodo as pétalas ao desabrochar das horas
Quando atingir o núcleo da corola
sei que o sol estará a pique da alucinação
e natureza já a definhar pelo gozo efêmero
da felicidade transparente
exercitatione
November 21, 2021 § Leave a comment

o poema começa contigo debruçado sobre as palavras
num impreciso dia de sol ou de vento ou de chuva
sorridente alheio às minhas vertiginosas aspirações
disferindo-me a luz mais reluzente a partir dos teus olhos
do sopro morno das tuas inauguradas mãos
da tua boca molhada da terra por onde vou chovendo a minha passagem
pela paisagem tão densa de pormenores inexplorados
como o teu corpo à mercê das minhas sôfregas expedições
que às vezes acho que avanço tão longe e tão rápido sobre a tua carne
que a terra desmoronada abandona-se desprendida do espaço de nós planadores
comigo no teu sentido despindo-me de todas as coisas “desimportantes”
como a queda a idade e as ponderações
porque a meio do poema ter-me-ás entretanto perguntado se sei por onde vou
e eu talvez te respondido que não sei bem e que não importa mas que me apraz
a natureza excessiva e imprevisível do amor na direção de nenhures
uma vez que o poema termina logo depois deste nosso abismo
quando tu extenuado de me olhares nestas minhas imprecisas labutas
de avançar sobre o teu corpo fundamental
desligas o sol e desprendes-te com um punhado de chuva no bolso
deste meu eclesiástico vento
Ψ
April 10, 2021 § Leave a comment

às vezes a poesia — interrogação
vezes nada
lavar a louça mais útil
como apanhar sol apanhar folhas apanhar pedras olhar o mar
apanhar palavras e uni-las — insensatez
domesticar animais selvagens
alguns presos sucumbem
melhor a vida fácil — parêntesis
a embriaguez
sem cordas sem crime sem suicídio sem explicações sensoriais
artefactos subtis imprecisões
é preciso comer e defecar — ponto
é sub-objetivo foder — exclamação
e depois o amor — travessão
beber beber beber
no corpo porque nenhum outro lugar
dialecto mais concreto e universal
poesia só ao invés do sabão
quando nada mais para lavar as feridas que o sangue — interjeição
a arder
— nos parágrafos
a arder